8 de agosto de 2006

sobre Medianeira



por Alfredo Fressia, poeta e ensaísta


Antes da leitura do presente Medianeira, primeiro poemário de Fábio Aristimunho Vargas, eu conhecia pouco o autor. Sabia que ele era poeta ―tinha lido uns textos seus na revista Phoenix (“uma publicação da Academia de Letras da Faculdade de Direito de São Paulo”, releio hoje). Sabia também que vivia de seu trabalho como advogado e que tinha estudado letras na USP. Por mera curiosidade perguntara-lhe o ano de nascimento. Pois nasceu em 1977, “em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul”, disse-me, mas se criou em Foz do Iguaçu, “perto de uma cidadezinha chamada Medianeira”. Fiquei pensando no fato de ele ter crescido em Foz, ao lado daquela selva que meu patrício Horacio Quiroga havia ousado transfigurar em palavras, tão perto dessas cataratas gigantes e de beleza dócil, nesse ângulo do mapa paranaense que ainda é Brasil, já é Argentina e é em muito o Paraguai, onde o povo fala o guarani junto às línguas ibéricas. Eu precisava ler esse poeta.

Sabia mais duas ou três coisas de Fábio. Conhecia essa espécie de low profile com que ele veste a sua pessoa, a sua delicadeza na fala e no silêncio, certa doçura que vem, creio, da convivência com a imensidão vegetal. Quanto a “Medianeira”, o nome deste poemário, o autor me explicara uma curiosidade. Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto iniciaram (ou quase) suas publicações com livros que designavam cidades próximas de seus lugares de origem. De fato, “Brejo das Almas” e “Pedra do Sono” são cidadezinhas, mineira uma, pernambucana a outra, antes de terem se tornado respectivos e esplêndidos nomes de livro de cada um desses poetas. Por fidelidade literária, quem sabe por superstição, mas também pelo calculado acaso das obras de arte, Fábio apelou ao mesmo recurso neste livro de estréia.

Depois da leitura de Medianeira o leitor não sabe muitas mais coisas sobre a pessoa do autor, mas toma em compensação uma refinada, definitiva lição de poesia. Porque o autor não fez em absoluto um diário íntimo. A “paranidade”, por exemplo, que poderia surgir desse passado na selva-urbana de Foz, por sua vez instalada na beira da selva-selva, quase não deixa registro neste livro. Sem dúvida, explica em parte um poema como “A terra, reciclada” mas ele não se torna uma real menção autobiográfica. A própria epígrafe do livro, tirada de outro poeta paranaense, também não convida às leituras biográficas. Assinala antes uma família poética, que aliás nada tem de provinciano, e a partir da qual Fábio escreve.

O poeta se nega à escrita confessional, de registro privado e identitário. Exibe mestria numa outra arte, a da transfiguração do mundo em palavras, a poesia como mediação para o conhecimento. A vida individual pode ser um relato desinteressante, ou repetido em quase todos os homens (sub specie aeternitatis, diriam os latinos, e Fábio sabe que a própria palavra “identidade” se forma a partir de idem, a mesma coisa, e iterum, de novo, outra vez). Para ele, a função da poesia é outra, é ser justamente “Medianeira”, isto é, “mediadora, intermediária, intercessora”, para seguir a ordem de acepções recebidas nos dicionários.

Como nos produtos da modernidade na qual Fábio escreve e se inscreve, a poesia deve “mediar”, transfigurar o material bruto da vida em arte. Por isso não importa aqui o grau de “originalidade” pessoal, romântica. Fábio insiste em ser um homem a mais na multidão (isso ele pensa –não quem o conhece), e, pior, por ela esmagado. É porque a transfiguração-mediação poética se realiza a partir de todos os materiais, e principalmente dos mais simples, dos menos prestigiosos ―como acontece nos mencionados Drummond ou Melo Neto, como em Paulo Leminski, como no sérvio Vasko Popa, como em toda a tradição de que Fábio se orgulha como de sua verdadeira família.

Para acabar ―que é inútil e pleonástico ser medianeiro da Medianeira― destacarei nesta poesia duas virtudes infreqüentes. A primeira é a capacidade que ela exibe de solidarizar o leitor. Repare-se que assim como em “Síndrome de Estocolmo”, “um poema vai de refém a cúmplice”, somos na prática os leitores os que terminamos totalmente cúmplices do discurso que Fábio arquiteta para nós, a legião dos seduzidos. A segunda das muitas virtudes desta poesia reside no trâmite retórico pelo qual Fábio finge não se levar a sério. Lembre o leitor que o humor em poesia é bom quando tem algo a desvendar, e do discurso deste livro não se sai igual a como se entrou.

É muito? Talvez, mas é o que se espera do livro de estréia de um poeta.

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