15 de novembro de 2009

Honduras, a Uniban da América Latina

Os paralelos entre a deposição de um presidente e o caso do vestido rosa

O golpe de Estado em Honduras, que em junho último depôs o governo democraticamente eleito do país, tem gerado um amplo movimento de repúdio por parte da comunidade internacional. O governo brasileiro tem especial interesse no assunto, não somente por se tratar de um vizinho latino-americano, mas sobretudo por ter-se surpreendido no meio do imbróglio quando a embaixada brasileira no país passou a servir de refúgio ao presidente deposto. Enquanto isso, no Brasil, uma estudante foi acossada por uma turba moralista, dentro de uma universidade, e poucos dias depois sumariamente expulsa da instituição, em virtude de ter trajado um vestido rosa considerado excessivamente curto para os padrões locais. Esses dois casos, que à primeira vista nada têm em comum além do fato de dividirem as páginas dos jornais e dos sites de notícias brasileiros nos últimos tempos, na verdade guardam intrigantes e reveladoras similaridades entre si.

Manuel Zelaya, o presidente democraticamente eleito de Honduras, vinha implementando medidas com vistas a organizar uma consulta popular por meio da qual o povo hondurenho decidiria se seria votada, em pleito simultâneo às eleições agendadas para novembro de 2009, a convocação de uma Assembleia Constituinte no país. Ocorre que essa consulta popular fora planejada à revelia do Legislativo e contrariando prévia decisão do Judiciário. Em 28 de junho de 2009 Zelaya foi preso e, ato contínuo, conduzido por militares até o aeroporto, onde foi embarcado à força em um avião com destino a San José, na Costa Rica. Alguns meses depois Zelaya retornou às escondidas ao país, refugiando-se na embaixada do Brasil em Tegucigalpa, de onde pretende negociar com os golpistas sua recondução ao poder.

Geisy Arruda, estudante de turismo na Universidade Bandeirante de São Paulo – Uniban, em São Bernardo do Campo, foi hostilizada e xingada (“puta, puta, puta!”) por uma turba formada por centenas de estudantes seus colegas de universidade. O motivo da hostilidade, ocorrida em 22 de outubro último, teria sido a decisão da estudante de frequentar as aulas trajando um vestido rosa considerado demasiado curto para os padrões do lugar. A estudante, então vestindo um jaleco por sobre a indumentária, precisou ser conduzida por policiais militares para poder deixar o local, sob os xingamentos dos presentes. Todos esses fatos foram gravados em câmeras de celulares e amplamente difundidos pela internet. No dia 7 de novembro seguinte, a universidade publicou em diversos jornais um anúncio pago por meio do qual noticiava, surpreendentemente, a expulsão da estudante em virtude de seus “trajes inadequados” e “postura incompatível com o ambiente da universidade”.

O primeiro paralelo que podemos traçar entre os dois casos se refere ao comportamento das, assim consideradas, vítimas. Zelaya vinha desrespeitando a legislação do país e confrontando os demais Poderes da República, ao atropelar as atribuições constitucionais do Legislativo e ignorar repetidas decisões do Judiciário. Além disso, Zelaya é acusado de pretender implantar no país um regime autoritário, de estilo bolivariano, sendo que a pretexto da Assembleia Constituinte não visava senão a perpetuar-se no poder, sob inspiração de Hugo Chaves, presidente da Venezuela, de quem Zelaya é publicamente aliado. De sua parte, Geisy Arruda claramente desrespeitou certas regras de etiqueta, ou mesmo éticas, ao escolher um vestido que em princípio não se adapta ao ambiente acadêmico de uma universidade e exibir uma “atitude provocativa”, ainda que se considere que essas regras configuram normas não escritas, visto que a Uniban não possui um regramento sobre o vestuário dos estudantes, e por isso mesmo difíceis de serem enquadradas a um caso concreto.

Tanto Manuel Zelaya quanto Geisy Arruda tiveram um comportamento reprovável. Em um caso houve desrespeito a normas fundamentais relacionadas ao funcionamento do Estado, no outro houve desrespeito a regras éticas e de etiqueta. Guardadas as devidas proporções, são ambos comportamentos passíveis de punição nos foros adequados. Isso no entanto não justifica a reação exacerbada de seus opositores, como observado nos dois casos. Manuel Zelaya foi preso, sumariamente deposto e expulso do país por militares. Geisy Arruda foi xingada e humilhada, escoltada por policiais militares para fora da Uniban e mais tarde sumariamente expulsa da instituição. Em nenhum dos casos foi observado o direito à ampla defesa e ao devido processo legal dos acusados. Dessa maneira se pode ver como uma reação desmesurada – por parte dos golpistas, em Honduras, por parte da turba moralista, na Uniban – pode ofuscar e mesmo minimizar o comportamento, desde o início reprovável, de suas vítimas.

A reação dos opositores de Manuel Zelaya e de Geisy Arruda pode ser dividida cada qual em dois momentos. Contra Zelaya houve primeiro a deposição sumária, sem ampla defesa, e em seguida a expulsão do país. Geisy Arruda foi alvo de uma sessão pública de xingamentos, seguida de sua expulsão sumária realizada pelos dirigentes da instituição, sem que lhe fosse permitida a ampla defesa. A deposição de Zelaya até poderia ter transcorrido dentro da legalidade, mesmo com sua prisão preventiva, nos termos da Constituição do país, assim como a expulsão de Geisy Arruda do quadro discente da Uniban também poderia ter sido realizada de maneira regular, em conformidade com o regulamento da instituição. Nada, no entanto, justifica os xingamentos públicos a que foi submetida a estudante e o cerceamento do seu direito à ampla defesa no caso da expulsão; de igual maneira, nada justifica a expulsão extralegal de Zelaya do país, realizada pelos militares, e o cerceamento do seu direito à ampla defesa quanto às causas de sua deposição, em conformidade com os princípios que emanam da Carta de Direitos Humanos da ONU (art. XI, 1) e do Pacto de San José da Costa Rica (art. 8º), dos quais Honduras é signatária.

Como não poderia deixar de ser, em ambos os casos existe uma retórica justificadora, ou pelo menos uma tentativa de. No anúncio de expulsão a Uniban interpretou a atitude da turba agressora, composta por seus alunos, como uma “reação coletiva de defesa do ambiente escolar” e justificou o desligamento da estudante do quadro discente da instituição “em razão do flagrante desrespeito aos princípios éticos, à dignidade acadêmica e à moralidade”. Seguindo essa linha de raciocínio, o golpe em Honduras poderia ser interpretado como um reação coletiva de defesa da legalidade e a expulsão de Zelaya, justificada em razão do seu flagrante desrespeito aos princípios constitucionais. Numa tal situação, segundo a interpretação dos golpistas, seria justificado incorrer no desrespeito aos princípios constitucionais para se defender os princípios constitucionais...

Dos atos que caracterizaram o golpe de Estado – deposição sem ampla defesa e devido processo legal, expulsão do país e pronto reconhecimento do novo governo por decisão da mais alta corte – participaram amplos setores da sociedade hondurenha, incluindo as Forças Armadas e os Poderes Legislativo e Judiciário. Roberto Micheletti, o presidente ora de facto do país, é a face visível do grupo golpista, a personificação da realidade política recém-instituída. Já a turba que agrediu a estudante Geisy Arruda não tem um rosto. Aliás, é justamente o anonimato o que viabiliza a atuação de turbas agressoras, pois proporciona ao indivíduo a possibilidade de extravasar publicamente seus rancores e frustrações com a convicção de que não será punido.

No entanto é falsa a sensação de impunidade, num e noutro caso. O golpe em Honduras tem motivado a punição a todo um país, que vem sofrendo com o ostracismo da comunidade internacional. A Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução que condena o golpe; Honduras foi suspensa da OEA; nenhum país reconhece formalmente seu governo golpista; diversos países retiraram seus embaixadores de Tegucigalpa; o FMI e o BID interromperam seus empréstimos ao país – tudo isso resulta em um amplo congelamento das relações internacionais de Honduras, tanto no âmbito diplomático quanto no comercial e financeiro. Por outro lado, os alunos da Uniban têm relatado à imprensa terem sido alvos de preconceitos diversos e que têm encontrado maior dificuldade para conseguir emprego.

O golpe de Estado e a atitude dos agressores da estudante como se vê não passaram impunes, ainda que a punição tenha vindo de fora para dentro, sem ter partido da via judicial ou administrativa como seria de se esperar. Além disso, a punição não se limita aos transgressores, atingindo em um caso não só os golpistas, mas todo o povo de Honduras, e no outro todos os alunos da Uniban, mesmo aqueles que não participaram da agressão ou sequer estavam presentes na universidade no dia dos acontecimentos. A punição extrapola, assim, os limites da culpabilidade individual e atinge toda a coletividade.

O caso do vestido rosa e o golpe em Honduras têm em comum o tempo em que ocorreram, meados de 2009, e o espaço que a imprensa brasileira lhes tem dedicado. São ambos ilustrativos de situações em que uma ação transgressora inicial (reformar ilegalmente a Constituição e usar um vestido excessivamente curto) motiva uma cadeia de reações (deposição e expulsão em um caso, xingamento público e expulsão em outro) tão desproporcionais e ilegítimas que não só minimizam a transgressão inicial, revalidando-a, como também transformam em vítima o primeiro transgressor (o presidente deposto e a estudante do vestido curto). Por conta disso, é mais do que compreensível a simpatia generalizada que se formou em torno de Zelaya e de Geisy Arruda, assim como a forte reação internacional e nacional que suscitaram contra si o golpe em Honduras e a atitude moralista com relação ao vestuário.

Honduras e a Uniban estão irmanadas pelo nível de descrédito de que têm gozado externamente em função de atos ilegítimos, e de todo condenáveis, perpetrados por certos grupos internos e por alguns de seus dirigentes. A Uniban, por força de toda a pressão externa de que foi alvo, acabou por revogar a expulsão da estudante do vestido curto e vem promovendo uma reflexão acerca dos acontecimentos junto a seus alunos e funcionários. Resta agora saber até quando Honduras – ou melhor, o grupo golpista que governa o país – resistirá à pressão externa para reempossar o presidente democraticamente eleito e permitir o retorno da normalidade democrática e das relações internacionais do país.

Quanto ao destino dos protagonistas dessas duas histórias paralelas, por ora podemos apenas constatar o óbvio: Manuel Zelaya teve coragem de retornar, clandestinamente, a Honduras, mas ainda não foi aceito de volta, visto que permanece ilhado na embaixada brasileira; Geisy Arruda, de sua parte, já foi aceita de volta, mas ainda não teve coragem de retornar à Uniban. Aguardamos para breve, e ansiosamente, os capítulos finais de ambas as novelas.

 Fábio Aristimunho Vargas,
mestre em Direito Internacional pela USP,
é escritor, professor e advogado