7 de novembro de 2012

DISSENSO ENTRE A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E O GOVERNO BRASILEIRO QUANTO À CONSTRUÇÃO DA USINA DE BELO MONTE


Fábio Aristimunho Vargas[1]

Resumo

A concessão de medidas cautelares, por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com o objetivo de interromper as obras da usina hidrelétrica de Belo Monte, em plena floresta amazônica, deu margem a uma reação inédita por parte do governo brasileiro, que, entre outras medidas, retirou seu embaixador junto à OEA e suspendeu durante meses o pagamento das quotas que lhe cabem. Essa controvérsia dá o ensejo para uma análise acerca da natureza e do alcance das competências dessa Comissão, assim como o histórico da relação entre o governo brasileiro e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Palavras-chaves: Comissão Interamericana de Direitos Humanos; usina de Belo Monte; medidas cautelares.


Introdução


Em 1º de abril de 2011, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) outorgou medidas cautelares em favor dos membros de comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu, no Pará, com a alegação de que a vida e a integridade pessoal dos beneficiários estariam em risco pelo impacto da construção da usina hidroelétrica Belo Monte.
O governo brasileiro deveria, assim, suspender imediatamente o processo de licenciamento do projeto da usina, interrompendo as obras, mas, em vez disso, passou a desqualificar publicamente a CIDH, determinou a retirada de seu embaixador junto à OEA e suspendeu durante meses o pagamento de sua quota, numa inédita reação às recomendações dessa entidade, que o país historicamente acatava.
Para bem compreender a natureza e a extensão do imbróglio, convém analisar o contexto maior em que se insere a referida Comissão e o papel que desempenha no âmbito da organização dos Estados Americanos, assim como a relação do Brasil com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Após a II Guerra Mundial foram instituídos, além de um sistema global de proteção dos direitos humanos – regido pela Carta da ONU, pela Declaração de 1948 e pelos Pactos de 1966 e outros tratados posteriores –, também sistemas de proteção em âmbito regional.
Se por um lado o sistema global é caracterizado pelo estabelecimento de normas substantivas, de sua parte os sistemas regionais procuram, de maneira geral, conjugar normas substantivas e instrumentais para a proteção dos direitos humanos. Ou seja, buscam garantir a eficácia das normas substantivas de direitos humanos em nível regional. Entre os sistemas regionais existentes, o interamericano, o europeu e o africano são os que se encontram em estágio mais avançado.
No presente trabalho analisaremos o Sistema Interamericano, com foco especial na estrutura e funções da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), à luz do conflito recentemente deflagrado com o governo do Brasil por conta de suas recomendações com relação à construção da usina hidrelétrica de Belo Monte em plena Floresta Amazônica.
O discurso oficial do governo brasileiro sustenta que não se busca senão o “aprimoramento” do sistema, embora esse argumento oculte certa tentativa de limitar o Sistema Interamericano em sua capacidade de agir de forma autônoma e independente. Sobre isso trataremos oportunamente.

1 Considerações sobre o Sistema Interamericano de Direitos Humanos


O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, estruturado a partir da Organização dos Estados Americanos – OEA, procurou conciliar normas substantivas e instrumentais com vistas à efetivação dos direitos humanos.
As normas substantivas estão materializadas na própria Carta da OEA e em uma declaração ampla, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), assim como em um tratado multilateral que vincula objetivamente os países ratificantes, o Pacto de São José da Costa Rica (1969). Essa estrutura obedece à lógica do sistema da ONU, com sua Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Pactos de 1966.
As normas instrumentais encontram-se na Carta da OEA e no Pacto de São José da Costa Rica (1969), que regem as atribuições e os procedimentos dos dois órgãos instituídos para promover o respeito e a defesa dos direitos humanos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A OEA possui trinta e cinco membros. Apenas vinte e cinco deles são signatários da Convenção, dos quais vinte e um aceitam a jurisdição da Corte.

1.1 A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem


A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem foi aprovada na IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá, em abril de 1948, a mesma conferência em que foi criada a OEA. Essa Declaração antecede em alguns meses a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de dezembro de 1948, proclamada pela Assembleia Geral da ONU, sendo, portanto, o primeiro documento internacional de direitos humanos de caráter geral.[2]

1.2 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos


A Carta da Organização dos Estados Americanos previa, desde 1948, a celebração de uma convenção interamericana sobre direitos humanos que viesse estabelecer “a estrutura, a competência e as normas de funcionamento da referida Comissão [Interamericana de Direitos Humanos], bem como as dos outros órgãos encarregados de tal matéria” (art. 106).
Esse tratado se materializou em 1969, com a celebração da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na cidade de São José da Costa Rica, originalmente firmada por doze países das Américas, entrando em vigência internacional em 1978. Por essa razão a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) é também conhecida como Pacto de São (ou San) José da Costa Rica – PSJCR.
O PSJCR conta atualmente vinte e cinco signatários: Argentina, Barbados, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Suriname, Trindade e Tobago, Uruguai e Venezuela. Entre os países da OEA que não aderiram a ele estão Belize, Canadá, Estados Unidos da América e Guiana. O Brasil aderiu ao Pacto em 1992, promulgado pelo Decreto n. 678/92.[3]
O Pacto define os direitos humanos que os Estados-partes se comprometem internacionalmente a respeitar e a dar garantias de cumprimento. Apesar de dispor detalhadamente sobre direitos civis e políticos (tais como os direitos individuais relacionados à vida, à integridade e à liberdade, a nacionalidade, a propriedade, o acesso às fontes da ciência e da cultura, os direitos políticos de reunião e de associação, a proteção devida pelo Estado aos seus nacionais e aos estrangeiros que se encontrem em seu território), o PSJCR é considerado demasiado genérico ao tratar dos direitos sociais, condensando a segunda geração de direitos humanos em um capítulo constituído por um único dispositivo:
Capítulo III - DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS
Artigo 26 - Desenvolvimento progressivo
Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.

Como se vê, o PSJCR é omisso em sua previsão quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais, limitando-se a remeter às disposições da Carta da OEA sobre a matéria.
O Pacto estabelece ainda as atribuições e os procedimentos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que foi criada pelo próprio documento, em 1969, e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, esta preexistente em relação à Convenção. Esses dois órgãos da OEA foram instituídos como meios de proteção dos direitos humanos no âmbito das Américas, sobretudo com relação aos direitos e liberdades previstos no PSJCR e na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem.
O Protocolo de San Salvador veio a complementar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais.

1.3 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH


A Comissão Interamericana de Direitos Humanos[4] é um órgão autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), com sede em Washington, que tem por principal função promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consultivo da OEA em tal matéria. A CIDH e a Corte Interamericana de Direitos Humanos compõem os dois pilares que sustentam o sistema interamericano de direitos humanos.
Criada em 1959 e tendo iniciado suas atividades em 1960, a Comissão é integrada por sete membros independentes, eleitos pela Assembleia Geral da OEA a título pessoal, não representando, portanto, seus países de origem ou residência, reunindo-se em sessões ordinárias e extraordinárias ao longo do ano.
A Comissão realiza visitas aos países da OEA para observar, in loco, a situação geral dos direitos humanos em um país ou para investigar uma situação particular. Como resultado, são publicados relatórios especiais sobre a situação geral dos direitos humanos no país visitado.
A Comissão pode examinar petições de indivíduos, grupos de indivíduos ou entidades não governamentais que contenham denúncias de violações a direitos humanos praticadas por um Estado-parte (art. 44 do Pacto de São José da Costa Rica).
Para que a petição seja admitida, é necessário que tenham sido cumpridos os seguintes requisitos: (a) esgotamento dos recursos na jurisdição interna, (b) a petição deve ser apresentada dentro de seis meses após a notificação da decisão definitiva da jurisdição interna, (c) não pode haver litispendência internacional – ou seja, a matéria da petição não pode estar pendente de outro processo de solução internacional.
A Comissão condenou o Brasil por violação de direitos previstos no PSJCR nos seguintes Casos:
·       Carandiru (homicídio de cento e onze detentos por forças policiais, em 1992; determinou-se a indenização às famílias e a tomada de medidas preventivas);
·       Candelária (homicídio de oito crianças e adolescentes, em 1993; determinou-se a realização de investigação e prestação de indenização às famílias);
·       Maria da Penha (tentativa de homicídio, em 1998, e demora da justiça penal; a CIDH determinou investigarem-se as irregularidades do processo e prestar-se indenização à vítima);
·       Diniz Bento da Silva (militante do MST morto pela PM do Paraná em 1993 e investigações ineficazes; realizar investigações sérias e imparciais, punir os culpados, indenizar a família e prevenir confrontos por terras);
·       Zé Pereira (trabalhador ferido por pistoleiros ao fugir da condição de escravidão, em 1989, no Pará; indenização de R$ 52 mil, comprometendo-se o Estado Brasileiro a rever sua legislação e aprimorar a fiscalização sobre o trabalho escravo).
Além disso, entre 1998 e 2011 o Brasil foi alvo de 27 “medidas cautelares” (recomendações com caráter de urgência) emitidas pela CIDH.
A Comissão apresentou, em março de 2009, uma nova demanda perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil. Trata-se do Caso Julia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), questão relacionada à detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de setenta pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região do Araguaia, no período da ditadura militar no Brasil. Também se refere ao sigilo permanente de determinados arquivos oficiais e à Lei de Anistia (Lei n. 6.683/79), em virtude da qual o Estado Brasileiro não promoveu uma investigação com o propósito de julgar e punir os responsáveis pelos desaparecimentos e pela execução de Maria Lucia Petit da Silva, cujos restos mortais foram encontrados e identificados em 1996, assim como do sigilo permanente de arquivos oficiais relativos a determinadas matérias.

1.4 A Corte Interamericana de Direitos Humanos


A Corte Interamericana de Direitos Humanos[5] é o órgão jurisdicional do sistema interamericano de direitos humanos. Com sede em São José, na Costa Rica, é composta por sete juízes nacionais eleitos pelos Estados-partes da Convenção.
O jurista brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade foi o presidente da Corte por dois mandatos consecutivos (1999 a 2003). Em junho de 2012, durante a 42ª Assembleia Geral da OEA, o advogado brasileiro Roberto Caldas foi eleito juiz da Corte em uma das disputas mais acirradas pelo cargo.
A Corte tem competência consultiva (interpretar dos dispositivos do PSJCR) e competência contenciosa (esta, limitada aos Estados-partes no Pacto de São José da Costa Rica que tenham reconhecido expressamente a jurisdição da Corte).
Dos vinte e cinco Estados-partes do Pacto de São José da Costa Rica, vinte e dois reconhecem a competência da Corte, dentre os quais o Brasil desde 2002.
Somente a Comissão e os Estados-partes podem submeter casos à apreciação da Corte, não sendo facultado ao indivíduo o ingresso direto de uma demanda. Ao final do procedimento a Corte profere uma sentença definitiva e inapelável.
De 2002 a 2012, a Corte proferiu ao todo quatro sentenças condenatórias ao Brasil.
Em 2002, por exemplo, a Corte analisou o Caso Urso Branco, relativo ao massacre de trinta detentos na Penitenciária de Urso Branco, em Porto Velho-RO, vindo a determinar medidas preventivas em favor de quarenta e sete presos.

4 Dissenso entre a CIDH e o governo brasileiro quanto à construção de Belo Monte


Pode-se dizer, por todo o exposto, que o governo brasileiro tradicionalmente se esforçava a dar cumprimento às recomendações da CIDH e às sentenças da Corte, embora no caso da Comissão não se tratasse de mais do que isso, “recomendações”. Exemplo disso é a Lei Maria da Penha, que visa dar proteção à mulher no ambiente doméstico, fruto de uma recomendação da CIDH. No entanto, quando a Comissão fez recomendações relacionadas à construção da hidrelétrica de Belo Monte, o Brasil mudou radicalmente de postura.
Em 1º de abril de 2011, a CIDH outorgou medidas cautelares a favor dos membros de comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu, no Pará, com a alegação de que a vida e a integridade pessoal dos beneficiários estariam em risco pelo impacto da construção da usina hidroelétrica Belo Monte. A CIDH solicitou, assim, ao governo brasileiro que suspendesse imediatamente o processo de licenciamento do projeto da usina e impedisse a execução de quaisquer obras até que fossem observadas certas condições mínimas com vistas a assegurar os direitos ameaçados.
 Dando voz a certa postura presidencial quando em situação de contrariedade, embora aqui se tratasse de uma questão concernente não ao âmbito da política interna, senão às relações internacionais, o governo brasileiro passou a desqualificar publicamente a CIDH, determinou a retirada de seu embaixador junto à OEA, suspendeu durante meses o pagamento de sua quota e declinou da candidatura de um membro brasileiro para a referida comissão. Foi inédita essa reação brasileira às recomendações da CIDH, embora houvesse um amplo histórico de questões analisadas pelo sistema que culminaram em condenações ao Brasil, tanto pela Comissão quanto pela Corte.
O discurso oficial do governo brasileiro sustenta que não se busca senão o “aprimoramento” do sistema, embora se possa inferir que essa argumentação oculte certa tentativa de limitar o Sistema em sua capacidade de agir de forma autônoma e independente. Em artigo recente o embaixador Guilherme Patriota, dando voz ao governo, faz as seguintes considerações:
Não é razoável que a comissão emita medidas cautelares com o intuito, por exemplo, de suspender a construção de hidrelétricas. Ela deve se ater a questões precípuas de direitos humanos, pronunciando-se por meio de pareceres recomendatórios e deixando que a corte assuma suas responsabilidades judiciais em casos que o justifiquem.[6]

Explica ainda que as gestões brasileiras visam instar a Comissão a rever procedimentos, tais como estabelecer a necessária fundamentação de todas as decisões adotadas por ela, definir critérios objetivos para a concessão, renovação e suspensão de medidas cautelares e estimular procedimentos de solução amistosa. O diálogo permanente com o Sistema Interamericano faria, assim, avançar a proteção dos direitos humanos nos planos regional e doméstico. Mas, ao rever unilateralmente o seu regulamento, a CIDH ter-se-ia outorgado competências características de tribunal, sem embasamento na Convenção, sobrepondo-se às competências da corte – esta sim, conclui o diplomata, um tribunal.
O Sistema Interamericano tem sido alvo preferencial de ataques de diferentes países ao longo de sua história. Os EUA, por exemplo, não são parte na Convenção Americana de Direitos Humanos nem reconhecem a jurisdição da Corte. Além disso, o país não dispõe de marco para internalizar decisões do Sistema Interamericano, apesar de a CIDH já se ter manifestado, entre outros assuntos, quanto à detenção indefinida e sem o devido processo legal de suspeitos de terrorismo em Guantánamo. Em agosto de 2011, a CIDH aprovou uma resolução instando o governo estadunidense a fechar a prisão, a despeito de as manifestações da Comissão permanecerem sem cumprimento.
Atualmente tramitam propostas de países de certa forma contrariados pela atuação da CIDH que, entre outras limitações:
restringem o poder da comissão de adotar medidas cautelares (único instrumento previsto para casos de urgência e gravidade), suprimem a possibilidade de analisar detidamente casos de países com violações massivas e limitam as faculdades das relatorias especiais, como a de liberdade de expressão e acesso à informação.[7]

O foco do Brasil tem sido limitar as medidas cautelares. Tal atitude vem encorajando posições extremas por parte de países como Venezuela e Equador, recentemente questionados em casos de liberdade de expressão e direitos políticos.
Considerando-se a conjuntura atual, não é de se esperar que a proteção aos direitos humanos ameaçados pelo projeto da usina de Belo Monte, assim como um eventual consenso entre o governo brasileiro e a CIDH quanto à questão, se construa tão prontamente quanto se vêm construindo, de maneira despercebida, os alicerces da barragem em pleno coração da Amazônia.

Bibliografia


ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2009.

AMARAL JR., Alberto do. Introdução ao Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2008.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos.  São Paulo: Saraiva, 2003.

GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito penal: comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: Pacto de San José da Costa Rica. São Paulo: RT, 2008.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (Org.). Coletânea de direito internacional, Constituição Federal. São Paulo: RT, 2008.

PATRIOTA, Guilherme de Aguiar. Dois pesos, duas medidas: Os EUA, que ignoram decisões sobre Guantánamo, dizem que queremos destruir a comissão. Nós a apoiamos. Mas ela não é tribunal, deve dar só pareceres. Folha de São Paulo, 07 de agosto de 2012, p. A3.

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2008.

VENTURA, Deisy; PIOVESAN, Flávia; KWEITEL, Juana. Sistema interamericano sob forte ataque: Após ser questionado por Belo Monte, o Brasil foi virulento. Ao querer limitar a ação da comissão, o país ainda encoraja Equador e Venezuela a atacarem o sistema. Folha de São Paulo, 07 de agosto de 2012, p. A3.




[1] Mestre em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo – USP. Doutorando em Integração da América Latina pela mesma universidade. Professor de Direito Internacional em Foz do Iguaçu. Contato: .
[2] Desconsidera-se neste caso a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, visto não se tratar de um documento internacional.
[3] Ao depositar a carta de adesão ao Pacto de São José da Costa Rica, o governo brasileiro fez a seguinte declaração interpretativa: “O Governo do Brasil entende que os arts. 43 e 48, alínea ‘d’, não incluem o direito automático de visitas e inspeções in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as quais dependerão da anuência expressa do Estado”. Com isso o governo brasileiro se reserva o direito de autorizar ou não as visitas da Comissão ao país.
[4] Endereço eletrônico da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com versões em inglês, espanhol, francês e português: .
[5] Endereço da Corte Interamericana de Direitos Humanos, disponível apenas em inglês e espanhol: .
[6] PATRIOTA, Guilherme. Dois pesos, duas medidas. p. A3.
[7] VENTURA, Deisy et al. Sistema Interamericano sob forte ataque. p. A3.

8 de maio de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE A TRIPARTIÇÃO DE PODERES NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO


Fábio Aristimunho Vargas[1]

1. Introdução

Nas monarquias antigas, medievais e até o início da Idade Moderna, não havia em princípio uma divisão funcional dos poderes do governo, sendo o monarca e (ou) as assembleias populares os encarregados de legislar, executar as leis e julgar as controvérsias. Era esse o caso, por exemplo, do tirano Creonte, rei lendário de Tebas retratado por Sófocles em sua tragédia Antígona, que acumulava poderes suficientes para baixar um decreto proibindo que se prestassem honras fúnebre a Polinice, para julgar sua irmã Antígona por havê-lo enterrado em desobediência à “lei dos homens” e para executar a lei ao determinar o cumprimento da pena. Ou seja, Creonte concentrava em si os poderes de criar, julgar e executar a lei.
Essa forma de exercício do poder sofreu importante impacto com o processo de constitucionalização que ganhou força ao longo do séc. XIX. Atualmente, todo sistema constitucional se baseia no princípio da divisão do poder do Estado em três órgãos distintos, independentes e harmônicos entre si: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Desses três órgãos, um é responsável por elaborar a lei (Legislativo), outro por executá-la (Executivo) e o terceiro por julgá-la (Judiciário).
Não se trata de uma divisão meramente burocrática, como se dá com a divisão material do poder em departamentos (ministérios, secretarias etc.), nem é uma divisão estanque. Não se presume que os poderes devam atuar com plena independência e plena autonomia. O poder é um só e o que se divide é o seu exercício em três órgãos distintos. Trata-se, em suma, de uma divisão funcional do poder de soberania.
O presente artigo tem por objetivo expor sucintamente os fundamentos teóricos da divisão dos poderes e, em seguida, analisar tal divisão à luz do constitucionalismo brasileiro.

2. Teóricos da divisão de poderes

A grande preocupação dos teóricos da divisão de poderes foi evitar a concentração de tanto poder numa só pessoa ou órgão. A limitação do poder pelo poder é o objetivo da divisão de poderes.
Platão teorizava que “não se deve estabelecer jamais uma autoridade demasiado poderosa e sem freio nem paliativos”, elogiando a contraposição, em Atenas, dos poderes do rei em face da assembleia dos anciãos. Aristóteles, na obra Política, esboçou a tríplice divisão de poderes.
John Locke, filósofo empirista inglês do séc. XVII, aconselhava a divisão do poder em quatro funções. Também Rousseau, filósofo francês do séc. XVII, concebeu uma doutrina da separação dos poderes.
Foi Montesquieu, autor de O espírito das leis (1748), o teórico que sistematizou o princípio da divisão dos poderes com maior profundidade. Há aí um evidente paralelo com a tipologia das formas de governo estabelecida por Aristóteles:

Monarquia (governo de um)

Poder Executivo
Aristocracia (governo dos melhores)

Poder Judiciário
Democracia (governo do povo)

Poder Legislativo
Montesquieu enfatizava a necessidade de equilíbrio e harmonia entre os três poderes.

3. Divisão dos poderes nas constituições modernas

A formulação de Montesquieu da divisão tripartite do poder foi desde logo adotada como “dogma” pelos Estados liberais e assim permanece até hoje sem grandes alterações.
A Constituição da Virgínia, de 1776, foi a primeira Constituição escrita a adotar a doutrina de Montesquieu, seguida pelas de outras ex-colônias inglesas da América do Norte. Por fim, em 1787, a Constituição dos Estados Unidos da América inscreveu a divisão tripartite de poderes como um de seus princípios fundamentais. Os constitucionalistas estadunidenses chamam de sistema de freios e contrapesos essa doutrina de contenção do poder pelo poder.
A divisão dos poderes foi celebrada também pela Revolução Francesa. Assim afirma o art. 16º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789): “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.

4. Divisão dos poderes no constitucionalismo brasileiro

No Brasil sempre se respeitou a divisão de poderes. A Constituição do Império, de 1824, adotava a separação quadripartita de poderes conforme a formulação de Benjamin Constant: poderes Moderador, Legislativo, Executivo e Judiciário. Ao imperador cabia os poderes Moderador e Executivo. O Poder Moderador, situado hierarquicamente acima dos demais poderes, seria responsável pelo equilíbrio entre eles.
As Constituições brasileiras posteriores adotaram a divisão em três poderes conforme Montesquieu. A Constituição Federal de 1988 (CF/88) manteve o princípio nos seguintes termos: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

4.1 Poder Legislativo

Ao Legislativo cumpre, em síntese, legislar e fiscalizar os atos do Executivo.
Legislar significa elaborar leis. Os deputados federais, os senadores, os deputados estaduais e os vereadores são os legisladores e representam a sociedade, pois são eleitos pelos cidadãos para que os representem no momento de discutir temas de interesse público e propor leis.
O Legislativo tem mecanismos para controlar o Executivo, por meio de fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial. Todas estas atribuições estão descritas no art. 44 da CF/88.
O Legislativo é estruturado em níveis federal, estadual e municipal.

a) Legislativo Federal

O Legislativo Federal (art. 44 a 75 da CF) é organizado em um sistema bicameral, ou seja, existem duas casas legislativas: o Senado Federal (representante dos estados e do DF) e a Câmara dos Deputados (representantes do povo). As duas casas juntas são chamadas de “Congresso Nacional”, que não é senão o parlamento brasileiro.
O Senado Federal é composto por 81 senadores, que representam as 27 unidades da Federação (26 estados federados e o Distrito Federal). Cada estado e o DF elegem três senadores para um mandato de oito anos. O Senado é renovado à razão de 1/3 e 2/3 a cada quatro anos. Tradicionalmente os países que adotam o Federalismo e o bicameralismo, a exemplo dos EUA, atribuem dois senadores a cada unidade da Federação; no Brasil o número de senadores por unidade foi aumentado de dois para três com a Constituição de 1946, e cada senador é eleito com dois suplentes.
A Câmara é formada por 513 deputados federais, que são os representantes do povo brasileiro. O mandato dos deputados federais é de quatro anos. Os estados e o DF elegem, cada um, um número de deputados federais proporcional à sua população. A partir de um cálculo complexo que parte da determinação constitucional de um mínimo de oito e um máximo de setenta deputados federais por unidade, chega-se à atual definição do número de deputados federais para cada unidade da Federação:



·        São Paulo (70)
·        Minas Gerais (53)
·        Rio de Janeiro (46)
·        Bahia (39)
·        Rio Grande do Sul (31)
·        Paraná (30)
·        Pernambuco (25)
·        Ceará (22)
·        Maranhão (18)
·        Pará (17)
·        Goiás (17)
·        Santa Catarina (16)
·        Paraíba (12)
·        Espírito Santo (10)
·        Piauí (10)
·        Alagoas (9)
·        Amazonas (8)
·        Rio Grande do Norte (8)
·        Mato Grosso (8)
·        Distrito Federal (8)
·        Mato Grosso do Sul (8)
·        Sergipe (8)
·        Rondônia (8)
·        Tocantins (8)
·        Acre (8)
·        Amapá (8)
·        Roraima (8)



Dessa forma de cálculo resultam algumas distorções no pacto federativo. Alguns estados acabam sub-representados enquanto outros gozam de hiper-representatividade. São Paulo, por exemplo, tem cerca de 21% da população do país e fica com apenas 13,6% das cadeiras da Câmara; Roraima, com cerca de 0,2% da população brasileira, tem garantido 1,6% das cadeiras. De maneira geral os estados da região norte têm representatividade maior do que sua proporção em relação à população brasileira.
Os deputados federais e os senadores podem se reeleger indefinidamente.
O Congresso Nacional elabora normas (processo legislativo) que valerão para todo o país. Podem dispor sobre todas as matérias de competência da União, que estão listadas no art. 21 e seguintes da CF.

b) Legislativo Estadual

A Assembleia Legislativa é a única casa legislativa estadual. Nela se reúnem os deputados estaduais eleitos pela população de cada estado. O mandato dos deputados estaduais é de quatro anos, podendo ser reeleitos. As leis elaboradas por eles valem apenas para o estado que os elegeu.
O número de cadeiras de cada Assembleia Legislativa é proporcional à população do estado.
No DF os deputados são chamados deputados distritais, instalados na Câmara Legislativa.

c) Legislativo Municipal

A Câmara Municipal é a única casa legislativa do município. Nela se reúnem os vereadores, eleitos pela população de cada município. Os vereadores têm um mandato de cinco anos podendo ser reeleitos. As leis elaboradas pelos vereadores valem apenas para o município que os elegeu. O DF não tem vereadores.

4.2. Poder Executivo

O Poder Executivo tem como função a prática de atos de governo e de administração da coisa pública. Isso quer dizer que o Executivo é o responsável por executar as leis e administrar a União, os estados e os municípios.
O Executivo no Brasil se divide em três instâncias: federal, estadual e municipal

a) Executivo Federal

O Chefe de governo (ou seja, o presidente da República) é o chefe do Executivo Federal. O presidente é eleito pelo voto direito dos brasileiros para um mandato de quatro anos, podendo haver uma reeleição subsequente.
O vice-presidente é eleito com o presidente, em uma única chapa. Em caso de impedimento do presidente, poderão sucedê-lo, nesta ordem: o vice-presidente, o presidente da Câmara dos Deputados, o presidente do Senado e o presidente do Supremo Tribunal Federal.
Algumas competências privativas do presidente da República:
·       nomear e exonerar os ministros de Estado;
·       exercer a direção superior da administração federal;
·       manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos;
·       participar do processo legislativo (criação de leis), na forma da CF;
·       celebrar tratados internacionais, sujeitos à aprovação do Congresso Nacional;
·       comandar as Forças Armadas (art. 84, CF) etc.
Os ministros de Estado são os assessores do presidente, sendo escolhidos diretamente por ele dentre brasileiros maiores de 21 anos de idade.

b) Executivo Estadual

O chefe do Executivo Estadual é o governador, eleito pelo povo de cada Estado (e do DF, onde se chama governador distrital) para um mandato de quatro anos, permitida uma reeleição subsequente.
Os assessores do governador são os secretários estaduais, que respondem por temas como saúde, educação, cultura etc., no âmbito do respectivo estado.

c) Executivo Municipal

O chefe do Executivo Municipal é o prefeito, que é eleito pelo povo de cada município. Seu mandato é de quatro anos e a possibilidade de um segundo turno durante a eleição depende do número de eleitores de cada município. Seus auxiliares são os secretários municipais. No Distrito Federal não existem prefeitos.










4.2.1. Síntese da estruturação do Executivo e do Legislativo no Brasil

Nível
Ente

Lei Maior
Chefe do Executivo
Formação do Legislativo
Federal
União
Constituição Federal
presidente
Câmara do deputados (513 deputados federais) e Senado Federal (81 senadores)
Estadual
Estados federados
Constituição Estadual
governador estadual

Assembleia Legislativa
(deputados estaduais)

Distrito Federal
Lei Orgânica
governador distrital

Câmara Legislativa (deputados distritais)

Municipal
Municípios
Lei Orgânica
prefeito
Câmara Municipal (vereadores)


4.3. Poder Judiciário

Ao Judiciário cumpre “judicar”, ou seja, julgar a lei. Isso significa que os juízes têm a função de determinar a aplicação das leis e decidir sobre conflitos.
O Judiciário não tem a importância política dos outros Poderes, mas constitui a principal garantia da efetivação das liberdades e dos direitos individuais e sociais.
No Brasil o princípio da “inafastabilidade da apreciação judiciária” está assegurado na CF/88 nos seguintes termos: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV).
O Judiciário no Brasil está estruturado conforme uma divisão racional das matérias a serem analisadas. São estes os seus organismos e suas respectivas competências:
·     Justiça do Trabalho: dissídios entre trabalhadores e empregados em decorrência da relação de trabalho;
·     Justiça Eleitoral: matérias referentes a eleições, partidos, perda de mandato e crimes eleitorais;
·     Justiça Militar da União:[2] crimes militares das Forças Armadas;
·     Justiça Militar Estadual:[3] crimes cometidos por bombeiros e policiais militares;
·     Justiça Comum Federal: causas em que a União for parte (impostos federais, licitações, etc.) ou for vítima de crime e ainda temas fundados em tratados internacionais;
·     Justiça Comum Estadual: competência residual, ou seja, todas as matérias não especificadas nas outras justiças (ex: crimes comuns, contratos, direito de família, sucessões, direito empresarial, danos materiais etc.); é a que tem mais competências.
A fim de que eventuais erros dos juízes possam ser corrigidos e também atender à natural inconformidade da parte vencida diante de julgamentos desfavoráveis, estabeleceu-se o princípio do duplo grau de jurisdição: o vencido tem, dentro de certos limites, a possibilidade de obter uma nova manifestação do Judiciário. Para que isso possa ser feito, é preciso que exista uma hierarquia de tribunais.
A seguir um sucinto organograma dos tribunais brasileiros:
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), criado em 2005, é o órgão do Poder Judiciário encarregado de controlar a atuação financeira e administrativa dos demais órgãos, além de supervisionar o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes.

5. Considerações finais

O governo é a soberania em ação. São distintos os órgãos de manifestação do poder de soberania e cada um exerce a totalidade do poder soberano dentre da sua esfera de atuação. “Cada ato de governo, manifestado por um dos três órgãos, representa uma manifestação completa do poder.”[4]
Kant comparou o Estado à Santíssima Trindade, pois trinos e unos ao mesmo tempo. Tal como os órgãos do corpo humano, os poderes do Estado mantém uma relação vital e nenhum deles representa, sozinho, a plenitude da vontade do Estado.
O adjetivo independente é, portanto, incompatível com a doutrina da divisão dos poderes. Os poderes só são independentes na medida em que funcionam separadamente. A divisão é formal e funcional, porém não substancial. Os poderes se integram e se complementam mutuamente com o objetivo de manifestar a soberania nacional.

Referências bibliográficas

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:  Saraiva, 1995.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: . Acessado em nov.2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 05 out. 1988.
MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1995.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004.



[1] Professor, escritor e advogado. Mestre em Direito Internacional pela USP.
[2] Os juízes militares e os Conselhos de Justiça exercem o primeiro grau de jurisdição. Como não existem “Tribunais Regionais Militares”, o segundo grau de jurisdição é exercido diretamente pelo STM.
[3] A primeira instância é constituída pelos juízes militares e pelos Conselhos de Justiça (um juiz togado e quatro oficiais); a segunda instância, nos estados de SP, RJ e MG, cumpre aos respectivos Tribunais de Justiça Militar, enquanto nos demais estados e Distrito Federal cabe aos TJs.
[4] MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 207.