15 de dezembro de 2013

SAÚDE PÚBLICA VERSUS COMÉRCIO INTERNACIONAL: Acesso a medicamentos no Brasil à luz do Direito Internacional


Fábio Aristimunho Vargas

Resumo: O presente estudo procura analisar o tratamento dispensado pelo ordenamento jurídico brasileiro à propriedade intelectual e ao direito de acesso a medicamentos, em consonância com o Direito Internacional, abordando aspectos históricos de sua evolução legislativa e a experiência brasileira concernente à restrição aos direitos de propriedade intelectual em casos de necessidades de saúde pública, sobretudo quanto à concessão de licenças compulsórias.

Palavras-chaves: propriedade intelectual; comércio internacional; licença compulsória.

PUBLIC HEALTH V. INTERNATIONAL TRADE:
Access to medicines in Brazil under International Law


Abstract: This study seeks to examine the treatment by Brazilian Law to intellectual property rights and the access to medicines rights, in line with International Law, addressing historical aspects of its legislative developments and Brazilian experience concerning to restriction of intellectual property rights in case of public health needs.

Key words: intellectual property rights; international commerce; compulsory license.







1      Breve histórico da proteção à propriedade intelectual na legislação brasileira


A lei imperial que instituiu os cursos jurídicos no Brasil, de 1827, acabou por introduzir, de modo inusitado e intempestivo, as primeiras disposições acerca da proteção à propriedade intelectual do ordenamento jurídico brasileiro. Veja-se o que dispõe, mantida a ortografia original, a Lei de 11 de agosto de 1827, que “Crêa dous Cursos de sciencias Juridicas e Sociaes, um na cidade de S. Paulo e outro na de Olinda”:

Art. 7.º - Os Lentes farão a escolha dos compendios da sua profissão, ou os arranjarão, não existindo já feitos, com tanto que as doutrinas estejam de accôrdo com o systema jurado pela nação. Estes compendios, depois de approvados pela Congregação, servirão interinamente; submettendo-se porém á approvação da Assembléa Geral, e o Governo os fará imprimir e fornecer ás escolas, competindo aos seus autores o privilegio exclusivo da obra, por dez annos.

Essa lei, que criou os cursos jurídicos no Brasil, que viriam a ser instalados no ano seguinte em São Paulo e logo depois em Olinda, estipulava, conforme visto, o privilégio para o autor de explorar sua obra pelo prazo de dez anos. Trata-se de um prazo exíguo sob qualquer ponto de vista, especialmente por referir-se a obras a serem produzidas pelos maiores especialistas do país. Mesmo assim, é preciso reconhecer que constituía um significativo avanço o fato de haver alguma proteção já àquela época. A título de comparação, no sistema atualmente em vigor no país (Lei 9610/98, art. 41) protegem-se os direitos patrimoniais do autor “por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento”.
A Lei de 28 de agosto de 1830, que “Concede privilegio ao que descobrir, inventar ou melhorar uma industria util e um premio ao que introduzir uma industria estrangeira”, introduziu no Brasil a proteção patentária, nos seguintes termos, mantida a ortografia original:

Art. 4º. O direito do descobridor, ou inventor, será firmado por uma patente, concedida gratuitamente, pagando só o sello, e o feitio; e para conseguil-a:
1º. Mostrará por escripto que a industria, a que se refere, é da sua propria invenção, ou descoberta.
2º. Depositará no Archivo Publico uma exacta e fiel exposição dos meios e processos, de que se serviu, com planos, desenhos ou modelos, que os esclareça, e sem elles, se não puder illustrar exactamente a materia.

A proteção se estendia de cinco a no máximo vinte anos, segundo a qualidade da descoberta ou invenção. Curiosamente, já naquela época previam-se hipóteses de limitação ao direito de patente em função de interesse público, como quando o agraciado não pusesse em prática a invenção ou descoberta dentro de dois anos de concedida a patente (art. 10, 3º) ou quando o “gênero manufaturado ou fabricado” fosse reconhecidamente nocivo ao público ou contrario às leis (art. 10, 5º). Assim, o conceito de exploração local da patente foi introduzido, no Brasil, pela lei de patentes de 1830, que em seu art. 10-3º previa a revogação do direito no caso de não exploração.
Já a Lei n. 3.129 de 1882 estabelecia não só a revogação decorrente da não exploração, como também a possibilidade de limitação dos direitos concedidos pela patente a uma região em que a produção de certos produtos era insuficiente para a demanda do mercado.
No âmbito do Direito Internacional o Brasil mantém um histórico de vanguarda com relação à adoção de normas internacionais sobre propriedade intelectual, a despeito de certos momentos de ofuscamento dessa característica. O país sempre esteve entre os primeiros a adotar os tratados sobre o assunto, tendo sido o único signatário latino-americano da Convenção de Paris de 1883 e signatário original da Convenção de Berna de 1886. O país tardou, no entanto, a adotar a revisão de Estocolmo da Convenção de Paris, firmada em 1967. Isso se explica pela errática política industrial adotada pelo governo de então, que privilegiava a substituição de importações e buscava desenvolver determinados setores estratégicos da indústria. Por isso, a partir do final da década de 60, o país passou a não mais admitir o patenteamento de invenções e processos nas áreas farmacêutica, alimentícia e química.
O conceito de licença compulsória somente seria introduzido no Brasil com o primeiro Código de Propriedade Industrial, Decreto-Lei n. 7.903/45, que previa a concessão de licenças compulsórias nas situações em que a patente não tivesse sido explorada nos dois anos seguintes à sua concessão, ou quando sua exploração tenha sido injustificadamente interrompida por um período de tempo superior a dois anos. Além disso, esta legislação estabelecia os procedimentos relativos à obtenção de licença compulsória, aos direitos do licenciado e do licenciador e às razões para seu cancelamento. Embora este Código tenha vigorado por vinte e dois anos, segundo MÔNICA S. GUISE nenhuma licença compulsória foi concedida (GUISE, 2004, p. 272).
Durante o governo militar, três Códigos de Propriedade Industrial estiveram em vigor: os Códigos de 1967, 1969 e 1971. Isso se deveu à pressão da indústria farmacêutica nacional e a um sentimento de nacionalismo exacerbado então vigente, assim como a um questionamento, no âmbito internacional, do sistema de patentes por parte dos países em desenvolvimento. Esses três Códigos previam a licença compulsória em condições similares ao Código de 1945 acerca da concessão e da revogação.
No Código de 1967, a grande novidade foi a introdução de licenças compulsórias não exclusivas em prol do interesse público, ao mesmo tempo em que a exploração local de uma patente não poderia ser substituída, complementada nem suplementada por importação.
O Código de 1969 manteve as disposições do Código anterior acerca da licença compulsória e vetou as patentes de medicamentos e alimentos, em seu art. 8º, alínea ‘c’.
Em 1970 foi criado um novo escritório de patentes, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI e, em 1971, um novo Código manteve as disposições gerais das legislações anteriores. O Código de 1971 vigorou até 1997.
Entre 1967 e 1971, conforme visto, nenhuma licença compulsória foi concedida no Brasil e, entre 1971 e 1997, “três licenças compulsórias foram concedidas: as primeiras desde a introdução do instituto na legislação brasileira. Duas delas foram concedidas para a patente de uma vacina (fundadas no interesse público) e a outra foi concedida porque a exploração foi considerada insuficiente para atender aos requisitos estabelecidos no texto legal” (GUISE, 2004, p. 273).
O Código de 1971 considerava como não patenteáveis as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos, de qualquer espécie, assim como seus respectivos de processos de obtenção ou modificação. Por conta dessa legislação, o Brasil era alvo de retaliações no comércio internacional. O ambiente histórico de então era marcado pelas políticas comerciais protecionistas de cunho nacionalista, que propugnavam por um modelo industrial brasileiro sustentado em uma política de substituição de importações, o que a longo prazo resultou em um modelo industrial obsoleto e ultrapassado.
Com a Constituição de 1988, foi consagrado o “interesse social” na proteção dos direitos de propriedade intelectual, como se depreende de seu art. 5º, inc. XXIX: “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”. Esse dispositivo assegura a tutela da propriedade intelectual em nível constitucional com base no interesse social. Mas não se pode perder de vista o caráter temporário dessa proteção, o que também está de acordo com o referido interesse social.
Nos anos 90, com a introdução de novas políticas liberalizantes no Brasil como as privatizações, redução das tarifas de importação, negociações multilaterais de comércio, o ambiente se tornou propício a uma nova legislação sobre propriedade intelectual. A década de 1990 viu, portanto, o país retornar ao pleno regime internacional de proteção à propriedade intelectual, com a nova política industrial do governo.
Em 1993, com a conclusão das negociações multilaterais da Rodada Uruguai, que redundaram na celebração do Acordo Constitutivo da OMC, foi introduzido o novo sistema de regulamentação da propriedade intelectual no comércio internacional com a adoção do Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, na sigla em inglês) sem o emprego dos prazos de carência. Esse tratado internacional foi incorporado à legislação nacional por meio do Decreto 1.355, de 31 de dezembro de 1994, que promulgou a Ata Final que Incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT.
Aos países emergentes, entre os quais o Brasil, foi facultado introduzir as regras do Acordo TRIPs em sua legislação nacional até 2000. O Brasil, no entanto, optou por não fazer uso integral do prazo adicional, sendo que, por meio do Decreto Legislativo n. 30, de 15 de dezembro de 1994, e do Decreto 1.355, de 30 de dezembro de 1994, introduziu as normas que estabeleciam um patamar mínimo de garantias e direitos no ordenamento jurídico nacional. Essa legislação entrou em vigor em 1º de janeiro de 1995.
O Acordo TRIPs promoveu modificações profundas no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente com relação à patenteabilidade de produtos e processos farmacêuticos, o que acabou por reintroduzir o Brasil no contexto do comércio internacional globalizado.
A Lei da Propriedade Industrial, Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996, atualmente em vigor, regulamenta direitos e obrigações relacionados a patentes de invenção e de modelos de utilidade, registro de desenho industrial, registro de marcas, indicações geográficas e concorrência desleal. Essa lei tece o mérito de reintroduzir no país o patenteamento de produtos farmacêuticos, alimentícios e de substâncias químicas em geral. O capítulo VIII, sessão III, trata da licença compulsória e prevê a situações para a sua  concessão, tais como (i) licença por abuso de direitos, (ii) licença por abuso de poder econômico, (iii) licença por não exploração ou exploração insuficiente, (iv) licença por não satisfação das necessidades do mercado, (v) licença por dependência e, por fim, (vi) licença por emergência nacional ou interesse público. Também há a disposição do art. 91, § 2º, que trata da licença que o empregado cotitular da patente confere ao empregador.
A licença compulsória para prevenir abusos do titular no exercício de seus direitos ou abuso do poder econômico está prevista no art. 68 da Lei. O § 1º desse artigo trata da licença compulsória no caso de exploração incompleta, de não atendimento comercial do mercado e da não exploração do objeto da patente em território brasileiro. O art. 70 prevê a concessão de licenças compulsórias para patentes dependentes e o art. 71 trata da emergência nacional e do interesse público.

2      Exaustão de direitos e importação paralela no Brasil


Exaustão de direitos, também chamada de esgotamento de direitos, é o momento em que se esgota o direito que o titular tem sobre uma patente. Esse momento normalmente se dá com primeira colocação, pelo titular da patente ou por seu licenciado, de um produto à venda em um determinado mercado. A partir desse momento, o titular da patente não mais poderá impedir a revenda do produto nem poderá reclamar nenhum direito adicional, já que seus direitos se esgotaram. O adquirente que legalmente adquiriu o produto objeto da patente poderá então comercializá-lo sem oposição do titular da patente.
A importação paralela se fundamenta no princípio da exaustão internacional de direitos. É caracterizada pela entrada de um produto legítimo em um mercado para o qual não era originalmente direcionado. O importador que adquire o produto genuíno no exterior é, por definição, diverso do detentor (distribuidor ou licenciado) do direito exclusivo de utilizar a marca ou a patente em um determinado território.
A Lei de Propriedade Industrial brasileira atualmente em vigor claramente privilegia a fabricação no país do objeto da proteção patentária, atendendo a uma tradicional política governamental de promover a geração de empregos e riquezas no território brasileiro. Essa política, contudo, se encontra hoje harmonizada com os princípios que emanam do Acordo TRIPs, especialmente quanto a três matérias particulares: a exploração local do objeto da patente, a importação paralela e a licença compulsória para o titular da patente que não estiver explorando seu objeto no território nacional.
O art. 42 da referida lei dispõe que “a patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos: I - produto objeto de patente; II - processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado”.
Na sequência, o art. 43-IV determina expressamente que não constitui infração à patente os atos de comercialização relativos “a produto fabricado de acordo com patente de processo ou de produto que tiver sido colocado no mercado interno diretamente pelo titular da patente ou com seu consentimento”.
Entende-se, assim, que o titular pode impedir a importação do produto patenteado ou do produto obtido por processo patenteado, resultando que a exaustão de direitos somente se opera com relação ao produto colocado no mercado interno (exaustão nacional de direitos). Em consequência, o titular tem o direito de impedir que um terceiro faça a importação não autorizada de um produto (importação paralela), mesmo se o produto tenha sido colocado no mercado externo pelo próprio titular.
Atente-se que a opção pela exaustão nacional para patentes, como norma geral adotada pela lei brasileira, foi deliberadamente tomada pelo legislador. Nos projetos de lei que antecederam a atual Lei de Propriedade Industrial, o atual inc. IV do art. 43 fazia menção também ao mercado externo, que acabou sendo suprimida (Cf. SILVEIRA, 1996, P. 79).
Pelo art. 68, § 1o., I, da referida Lei, a importação é facilitada não apenas ao titular da patente, mas também a terceiros:

Art. 68. O titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial.
Parágrafo 1o. Ensejam, igualmente, licença compulsória:
I - a não exploração do objeto da patente no território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta do produto, ou, ainda, a falta de uso integral do processo patenteado, ressalvados os casos de inviabilidade econômica, quando será admitida a importação; (…) [sem grifo no original]

Segundo Simone Scholze, o mérito desse dispositivo “não é propriamente exigir a fabricação local, mas impedir que haja monopólio de importação – a importação incide como sanção para quem injustificadamente não fabrica no Brasil” (SCHOLZE, 2001, P.11).
O § 4º do art. 68 da Lei 9.279 estipula que, no caso de importação para exploração da patente, será admitida a importação paralela por terceiros. De acordo com uma leitura conjunta dos artigos 42 e 43, IV, da Lei, o titular, de uma forma geral, tem o direito de opor sua patente à importação não autorizada do produto patenteado, ainda que ele tenha sido colocado no mercado externo pelo titular ou com seu consentimento. Desta forma, mesmo que se admita a exploração por importação, a lei impõe uma penalidade, que é a cassação do direito assegurado pela patente de impedir a importação paralela.
Nesse sentido, a Associação Brasileira da Propriedade Intelectual faz a seguinte interpretação com relação ao Acordo TRIPs:

2.2. Embora o artigo 6 do TRIPS exclua, textualmente, as questões relativas à exaustão dos direitos de propriedade intelectual do escopo do acordo, isso não altera o fato de que, como consequência de uma discriminação não autorizada pelo artigo 27.1, os direitos garantidos pela patente são restringidos. Ou seja, embora os países membros sejam livres para determinar o âmbito em que ocorre a exaustão, uma vez determinada a extensão dos direitos do titular nesse aspecto, eles não deveriam ser afetados por uma discriminação relativa ao local de fabricação do produto patenteado. (ABPI, Resolução n. 7)

Vê-se, desse modo, que a Lei de Propriedade Industrial brasileira privilegia a fabricação local, sem, entretanto, impedir a importação do produto patenteado pelo titular ou por terceiros caso a produção local seja inviável.

3      O licenciamento compulsório de patentes de medicamentos no Brasil


Licença compulsória é a autorização para o uso de uma invenção sem o consentimento do titular da patente, que pode ser concedida, pela autoridade governamental competente, a um terceiro ou a um organismo governamental. Essa flexibilidade do direito de patente está expressamente prevista e regulada pelo art. 31 do Acordo TRIPs.

ART.31 - Quando a legislação de um Membro permite outro uso(7) do objeto da patente sem autorização de seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo Governo, as seguintes disposições serão respeitadas:
[nota original] (7) O termo "outro uso" refere-se ao uso diferente daquele permitido pelo art. 30.
    a) a autorização desse uso será considerada com base no seu mérito individual;
    b) esse uso só poderá ser permitido se o usuário proposto tiver previamente buscado obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável. Essa condição pode ser dispensada por um Membro em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não comercial. No caso de uso público não comercial, quando o Governo ou o contratante sabe ou tem base demonstrável para saber, sem proceder a uma busca, que uma patente vigente é ou será usada pelo ou para o Governo, o titular será prontamente informado;
     c) o alcance e a duração desse uso será restrito ao objetivo para o qual foi autorizado e, no caso de tecnologia de semicondutores, será apenas para uso público não comercial ou para remediar um procedimento determinado como sendo anticompetitivo ou desleal após um processo administrativo ou judicial;
    d) esse uso será não exclusivo;
    e) esse uso não será transferível, exceto conjuntamente com a empresa ou parte da empresa que dele usufrui;
    f) esse uso será autorizado predominantemente para suprir o mercado interno do Membro que o autorizou;
    g) sem prejuízo da proteção adequada dos legítimos interesses das pessoas autorizadas, a autorização desse uso poderá ser terminada se e quando as circunstâncias que o propiciaram deixarem de existir e se for improvável que venham a existir novamente. A autoridade competente terá o poder de rever, mediante pedido fundamentado, se essas circunstâncias persistem;
    h) o titular será adequadamente remunerado nas circunstâncias de cada uso, levando-se em conta o valor econômico da autorização;
    i) a validade legal de qualquer decisão relativa à autorização desse uso estará sujeita a recurso judicial ou a outro recurso independente junto a uma autoridade claramente superior naquele Membro;
    j) qualquer decisão sobre a remuneração concedida com relação a esse uso estará sujeita a recurso judicial ou outro recurso independente junto a uma autoridade claramente superior naquele Membro;
    k) os Membros não estão obrigados a aplicar as condições estabelecidas nos subparágrafos "b" e "f" quando esse uso for permitido para remediar um procedimento determinado como sendo anticompetitivo ou desleal após um processo administrativo ou judicial. A necessidade de corrigir práticas anticompetitivas ou desleais pode ser levada em conta na determinação da remuneração em tais casos. As autoridades competentes terão o poder de recusar a terminação da autorização se e quando as condições que a propiciaram forem tendentes a ocorrer novamente;
    l) quando esse uso é autorizado para permitir a exploração de uma patente ("a segunda patente") que não pode ser explorada sem violar outra patente ("a primeira patente"), as seguintes condições adicionais serão aplicadas:
ART.31 - Quando a legislação de um Membro permite outro uso(7) do objeto da patente sem autorização de seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo Governo, as seguintes disposições serão respeitadas:
[nota original] (7) O termo "outro uso" refere-se ao uso diferente daquele permitido pelo art. 30.
    a) a autorização desse uso será considerada com base no seu mérito individual;
    b) esse uso só poderá ser permitido se o usuário proposto tiver previamente buscado obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável. Essa condição pode ser dispensada por um Membro em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não comercial. No caso de uso público não comercial, quando o Governo ou o contratante sabe ou tem base demonstrável para saber, sem proceder a uma busca, que uma patente vigente é ou será usada pelo ou para o Governo, o titular será prontamente informado;
     c) o alcance e a duração desse uso será restrito ao objetivo para o qual foi autorizado e, no caso de tecnologia de semicondutores, será apenas para uso público não comercial ou para remediar um procedimento determinado como sendo anticompetitivo ou desleal após um processo administrativo ou judicial;
    d) esse uso será não exclusivo;
    e) esse uso não será transferível, exceto conjuntamente com a empresa ou parte da empresa que dele usufrui;
    f) esse uso será autorizado predominantemente para suprir o mercado interno do Membro que o autorizou;
    g) sem prejuízo da proteção adequada dos legítimos interesses das pessoas autorizadas, a autorização desse uso poderá ser terminada se e quando as circunstâncias que o propiciaram deixarem de existir e se for improvável que venham a existir novamente. A autoridade competente terá o poder de rever, mediante pedido fundamentado, se essas circunstâncias persistem;
    h) o titular será adequadamente remunerado nas circunstâncias de cada uso, levando-se em conta o valor econômico da autorização;
    i) a validade legal de qualquer decisão relativa à autorização desse uso estará sujeita a recurso judicial ou a outro recurso independente junto a uma autoridade claramente superior naquele Membro;
    j) qualquer decisão sobre a remuneração concedida com relação a esse uso estará sujeita a recurso judicial ou outro recurso independente junto a uma autoridade claramente superior naquele Membro;
    k) os Membros não estão obrigados a aplicar as condições estabelecidas nos subparágrafos "b" e "f" quando esse uso for permitido para remediar um procedimento determinado como sendo anticompetitivo ou desleal após um processo administrativo ou judicial. A necessidade de corrigir práticas anticompetitivas ou desleais pode ser levada em conta na determinação da remuneração em tais casos. As autoridades competentes terão o poder de recusar a terminação da autorização se e quando as condições que a propiciaram forem tendentes a ocorrer novamente;
    l) quando esse uso é autorizado para permitir a exploração de uma patente ("a segunda patente") que não pode ser explorada sem violar outra patente ("a primeira patente"), as seguintes condições adicionais serão aplicadas:
i) a invenção identificada na segunda patente envolverá um avanço técnico importante de considerável significado econômico em relação à invenção identificada na primeira patente;
ii) o titular da primeira patente estará habilitado a receber uma licença cruzada, em termos razoáveis, para usar a invenção identificada na segunda patente; e
iii) o uso autorizado com relação à primeira patente será não transferível, exceto com a transferência da segunda patente.

Em março de 2001, o governo brasileiro, ameaçando fornecer licenciamento compulsório para a produção dos medicamentos Efavirenz e Indinavir, utilizados no tratamento do HIV e produzidos por laboratório estrangeiro instalado no país, forçou uma revisão do contrato de fornecimento com o detentor da patente com vistas à redução dos preços.
Esse precedente motivou a que o governo brasileiro apresentasse, na 54ª Assembleia Mundial da Saúde, ocorrida em Genebra, em maio de 2001, uma proposta de reconhecimento do acesso a medicamentos para a Aids como um direito humano fundamental, proposta essa que sofreu fortes resistências, em especial dos governos de países que sediam grandes multinacionais do setor farmacêutico. No final, os países membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovaram por unanimidade a declaração proposta pelo governo brasileiro.
Em agosto de 2001 o governo brasileiro voltou a obter expressiva redução de preço de medicamentos de combate à Aids, desta vez sobre o fármaco Nelfinavir. Novamente, mediante a ameaça de abertura de processo de licença compulsória, que foi suspenso após a negociação com o laboratório produtor.
Desde então, o programa brasileiro de prevenção e tratamento da Aids, baseado principalmente na produção local de medicamentos genéricos, passou a ser frequentemente apontado por organismos internacionais como um modelo a ser seguido pelo países em desenvolvimento.
Em 14 de novembro de 2001, os então cento e quarenta e dois países membros da OMC aprovam em Doha a “Declaração Ministerial sobre TRIPs e Saúde Pública”, garantindo que o Acordo sobre Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio não se sobreporá a questões relacionadas à saúde pública.
Em 2007 o governo brasileiro determinou, por meio do Decreto n. 6.108/07, seu primeiro licenciamento compulsório, referente a duas patentes do medicamento Efavirenz, de titularidade do laboratório estadunidense Merck, Sharp & Dohme. A medida resultou do fracasso das negociações entre as partes com vistas ao estabelecimento de um preço razoável para o princípio ativo, empregado no coquetel de combate ao HIV e distribuído gratuitamente pelo governo brasileiro para pacientes contaminados pelo vírus por meio de seu Programa Nacional de DST/Aids. Reproduz-se abaixo, na íntegra por pertinente, o texto do referido decreto:

DECRETO Nº 6.108, DE 4 DE MAIO DE 2007.
Concede licenciamento compulsório, por interesse público, de patentes referentes ao Efavirenz, para fins de uso público não-comercial.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto nos arts. 71 da Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996, e 4º do Decreto no 3.201, de 6 de outubro de 1999, 
DECRETA: 
Art. 1º Fica concedido, de ofício, licenciamento compulsório por interesse público das Patentes nos 1100250-6 e 9608839-7. 
§ 1º O licenciamento compulsório previsto no caput é concedido sem exclusividade e para fins de uso público não-comercial, no âmbito do Programa Nacional de DST/Aids, nos termos da Lei no 9.313, de 13 de novembro de 1996, tendo como prazo de vigência cinco anos, podendo ser prorrogado por até igual período. (Prorrogação de prazo)
§ 2º O licenciamento compulsório previsto no caput extinguir-se-á mediante ato do Ministro de Estado da Saúde, se cessarem as circunstâncias de interesse público que o determinaram. 
Art. 2º A remuneração do titular das patentes de que trata o art. 1º é fixada em um inteiro e cinco décimos por cento sobre o custo do medicamento produzido e acabado pelo Ministério da Saúde ou o preço do medicamento que lhe for entregue. 
Art. 3º O titular das patentes licenciadas no art. 1º está obrigado a disponibilizar ao Ministério da Saúde todas as informações necessárias e suficientes à efetiva reprodução dos objetos protegidos, devendo a União assegurar a proteção cabível dessas informações contra a concorrência desleal e práticas comerciais desonestas. 
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no art. 24 e no Título I, Capítulo VI, da Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996, no caso de descumprimento da obrigação prevista no caput. 
Art. 4º A exploração das patentes licenciadas nos termos deste Decreto poderá ser realizada diretamente pela União ou por terceiros devidamente contratados ou conveniados, permanecendo impedida a reprodução de seus objetos para outros fins, sob pena de ser considerada ilícita. 
Art. 5º Nos casos em que não seja possível o atendimento à situação de interesse público com o produto colocado no mercado interno, ou se mostre inviável a fabricação, no todo ou em parte, dos objetos das patentes pela União ou por terceiros contratados ou conveniados, poderá a União realizar a importação do produto objeto das patentes, sem prejuízo da remuneração prevista no art. 2º. 
Art. 6º Caberá ao Ministério da Saúde informar ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI, para fins de anotação, o licenciamento compulsório concedido por este Decreto, bem como alterações e extinção desse licenciamento. 
Art. 7º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 4 de maio de 2007; 186º da Independência e 119º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
José Gomes Temporão

A concessão do licenciamento se justificava, segundo o decreto, para “fins de uso público não-comercial” (art. 1º, §1º do Decreto). Além disso, o texto legal atribuiu a concessão da licença compulsória a circunstâncias de interesse público (art. 1º, §2º). Há previsão quanto à devida remuneração (ou indenização) do titular da patente, fixada em 1,5% “sobre o custo do medicamento produzido e acabado pelo Ministério da Saúde ou o preço do medicamento que lhe for entregue” (art. 2º). O laboratório detentor da patente estava obrigado a disponibilizar ao Ministério da Saúde todas as informações necessárias e suficientes a sua reprodução, enquanto o governo passaria a ter o dever de protegê-las (art. 3º). Também se previu a possibilidade de importação paralela do produto (art. 5º).
Seguindo a iniciativa de países como Estados Unidos e Índia, o governo brasileiro declarou, em 2008, como de interesse público o antirretroviral Tenofovir (também conhecido pelo nome comercial, Viread) e em seguida negou o pedido de patente requerido pelo laboratório canadense Gilead. Inicialmente, portaria do então ministro da Saúde, José Gomes Temporão, publicada no Diário Oficial da União de 09 de abril de 2007, declarou o medicamento como de interesse público. Em seguida, o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual – INPI, órgão do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, negou, em 16 de agosto de 2008, o registro de patente, que tramitava desde 1997, com fundamento no não atendimento do critério de atividade inventiva (arts. 8º e 13 da Lei de Propriedade Industrial, Lei n. 9.279/1996). À época dos fatos, o tenofovir era é um dos medicamentos mais caros do Programa Nacional de DST/Aids, sendo empregado por mais de trinta mil pacientes a um custo anual de aproximadamente US$ 40 milhões, conforme comunicado do Ministério da Saúde noticiado pela imprensa. Negado o pedido de patente, o governo brasileiro passou a comprar o antirretroviral de outros fabricantes, de países como a Índia, a preços que representam uma fração dos originalmente praticados pelo laboratório que pleiteava a patente.

4      Postura da diplomacia brasileira em matéria de acesso a medicamentos


No âmbito das negociações multilaterais sobre propriedade intelectual, é notório que o país tem adotado uma postura pró-ativa quanto a defender seus interesses de saúde pública. Dentre as propostas que o Brasil apoia e vem defendendo junto aos organismos internacionais, algumas podem ser aqui destacadas.[1]
Para o Brasil, é premente o fortalecimento das salvaguardas para a saúde pública existentes no TRIPS, de forma a assegurar que os governos tenham o direito de produzir medicamentos localmente, se for do interesse da saúde pública.
Deve-se também adotar uma interpretação do Acordo TRIPs em prol da saúde pública, valendo-se do uso flexível das salvaguardas e exceções existentes, incluindo licenciamento compulsório e direito à implementação de medidas para importação paralela de medicamentos.
O governo brasileiro tem ainda defendido a necessidade de se diminuir ao máximo a burocracia imposta aos países para a concessão de licenças compulsórias; de se prolongar os prazos de implementação especificados no TRIPS para os países em desenvolvimento quanto à proteção de patentes (tanto do produto como do processo) para medicamentos; e de se permitir aos países em desenvolvimento a opção de excluir medicamentos do patenteamento por motivos humanitários ou de saúde pública, para poder cumprir com os objetivos de salvar vidas, combater e controlar epidemias, e assegurar que a produção carente obtenha acesso a medicamentos essenciais para o tratamento de doenças relacionadas com a pobreza.
Mais do que tudo, é importante estabelecer-se um compromisso internacional com o objetivo de evitar pressões bilaterais ou regionais sobre países em desenvolvimento que adotem medidas para implementar seus direitos no âmbito do TRIPS visando proteger a saúde pública e promover o acesso a medicamentos, nem pressioná-los para que apliquem padrões de propriedade intelectual desnecessariamente rigorosos e potencialmente prejudiciais.
De igual maneira, também se tem defendido o apoio a uma moratória para disputas movidas contra países em desenvolvimento que representam um entrave a sua capacidade de promover o acesso a medicamentos e proteger a saúde pública (incluindo o uso do licenciamento compulsório e medidas de importação paralela).

Conclusões



A contradição entre comércio internacional e direitos humanos, em matéria de acesso a medicamentos, revela-se um conflito meramente aparente quando bem analisados os princípios gerais do Direito e os diplomas legais, internos ou internacionais, em que se assenta a matéria.
De igual maneira, a frequente alegação de que a proteção à propriedade intelectual acaba por se mostrar contrária e restritiva ao acesso à saúde é um equívoco a ser superado, e convém demonstrar que o direito à saúde e a proteção à propriedade intelectual desfrutam de uma relação muito mais harmônica do que normalmente se supõe.
É o que tem demonstrado a experiência brasileira de acesso a medicamentos.

Referências


GUISE, Mônica Steffen. Propriedade intelectual e saúde pública: licenças compulsórias. In: MENEZES, Wagner (Org.). Estudos de direito internacional: Anais do 2º Congresso Brasileiro de Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2004. p. 268-281.

MÉDICOS SEM FRONTEIRAS / MÉDECINS SANS FRONTIERS. Desequilíbrio fatal: a crise em pesquisa e desenvolvimento de drogas para doenças negligenciadas. Campanha de acesso a medicamentos essenciais, [S.l.], setembro de 2001.

BRASIL. Lei de 11 de agosto de 1827. Crêa dous Cursos de sciencias Juridicas e Sociaes, um na cidade de S. Paulo e outro na de Olinda. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_63/Lei_1827.htm>. Acessado em: set.13.

______. Lei de 28 de agosto de 1830. Concede privilegio ao que descobrir, inventar ou melhorar uma industria util e um premio ao que introduzir uma industria estrangeira, e regula sua concessão. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-28-8-1830.htm>. Acessado em: set.13.

______. Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 fev. 1998.

______. Decreto n. 6.108, de 4 de maio de 2007. Concede licenciamento compulsório, por interesse público, de patentes referentes ao Efavirenz, para fins de uso público não-comercial. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 07 maio 2007.

SCHOLZE, Simone H. C. Fabricação local, licença compulsória e importação paralela na Lei de Propriedade Industrial. Revista da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual [RABPI]. São Paulo: Bandeirante, n. 54, Set./Out., 2001.

SILVEIRA, Newton. A propriedade intelectual e a nova lei de propriedade industrial: Lei n. 9279 de 14/5/96. São Paulo: Saraiva, 1996.




[1] Informações depreendidas de análise difusa de documentos variados do governo brasileiro ou de seus prepostos.

7 de dezembro de 2013

O REGIME JURÍDICO DAS LÍNGUAS NA PENÍNSULA IBÉRICA


Fábio Aristimunho Vargas*

Palestra ministrada no eventoLiteraturas, Fronteiras, Enfrentamentos”, na mesaCatalão, Basco e Portunhol: às margens da língua espanhola?”, evento organizado pelo Projeto Identidade nos dias 06 e 07 de maio de 2006, em São Paulo-SP.

1. Apresentação

Em termos lingüísticos, a Península Ibérica, ao contrário do que indica o senso comum, não é uma região salomonicamente dividida entre o português, em Portugal, e o espanhol ou castelhano, na Espanha. As divisões lingüísticas são na verdade bastante profundas e sutis, com uma grande diversidade de línguas regionais que gozam de prestígios variados entre os falantes e entre os não falantes que com elas travam contato. Essa diferença de status das línguas acaba se refletindo nas legislações que as normalizam e protegem, resultando em enormes discrepâncias no trato legislativo do tema.

O presente estudo pretende fornecer um panorama dos diferentes status de que gozam as línguas atualmente faladas na Península Ibérica (aqui considerada como o território continental que reúne Portugal, Espanha, Andorra e Gibraltar) e como isso se reflete nos diferentes sistemas jurídicos das línguas não dominantes ou minoritárias da região.

2. Situação de Portugal

O português é a língua da totalidade dos portugueses. Partindo desse pressuposto, é recorrente a menção a Portugal como um exemplo de país uniforme, em que se confundiriam os conceitos de nação, língua e território. Isso no entanto deixou de ser verdadepelo menos oficialmentedesde 1999, quando o Parlamento reconheceu a existência, concedeu proteção e atribuiu status de co-oficialidade a um idioma minoritário falado por uma restrita parcela da população de uma remota região do país, o mirandês.

·       mirandês

O mirandês é empregado hoje por cerca de 15 mil falantes, sobretudo pessoas idosas do meio rural. Sua área se restringe à cidade de Miranda do Douro e mais duas aldeias próximas, na região de Trás-os-Montes (nordeste de Portugal), onde é ensinada nas escolas. É uma língua afiliada ao ramo asturiano-leonês. Supõe-se que exista em Portugal desde a época da Reconquista, entre os séc. XII e XIII.

A língua foi reconhecida como tal apenas em 1999, quando o Parlamento Português lhe concedeu o status de co-oficialidade. É bastante significativo, e também louvável, que um país como Portugal, historicamente tido como o mais uniforme da Europa Ocidental, tenha reconhecido a existência de uma língua minoritária dentro de seu território.

Uma curiosidade: em 2005 foi lançado em Portugal o álbum “As aventuras de Astérix” em mirandês, que foi um verdadeiro sucesso de vendas. Como, no entanto, a população nativa de fala mirandesa é bastante reduzida, esse sucesso certamente deveu-se mais à curiosidade dos compradores por uma língua desconhecida do que propriamente ao seu mercado original.

3. Situação da Espanha

Com o fim do governo Franco, em 1975, a Espanha vivenciou uma mudança radical no tratamento jurídico das línguas faladas em seu território. Até então as línguas locais eram proibidas e qualquer tentativa de promovê-las era sistematicamente reprimida pelo regime, sendo que o castelhano era a língua oficial e a única permitida.

A Constituição Espanhola de 1978 concedeu autonomia às três nacionalidades históricas[1], nomeadamente os catalães, bascos e galegos, e atribuiu status de co-oficialidade em âmbito regional às “demais línguas espanholas”:

“Artículo 3

1. El castellano es la lengua española oficial del Estado. Todos los españoles tienen el deber de conocerla y el derecho a usarla.
2. Las demás lenguas españolas serán también oficiales en las respectivas Comunidades Autónomas de acuerdo con sus Estatutos.
3. La riqueza de las distintas modalidades lingüísticas de España es un patrimonio cultural que será objeto de especial respeto y protección.”[2]

Esse dispositivo, apesar do mérito de conceder oficialidade às “demais línguas espanholas” além do castelhano, acabou criando uma diferença de status entre elas. O dever de conhecer se refere apenas ao castelhano, enquanto que com relação às outras línguas existe apenas um direito.

Assim, com base no status que cada língua regional goza dentro do Estado Espanhol, podemos fazer a seguinte distinção: (i) línguas com legislação plena; (ii) línguas com legislação parcial; (iii) línguas criadas por decreto; e (iv) línguas não reconhecidas.

3.1. Línguas com legislação plena

São as línguas que gozam, pelo menos em tese, dos mesmos direitos que o castelhano nos territórios onde são reconhecidas. É o caso do catalão (e do valenciano), do basco e do galego. No entanto a suposta equivalência estrita quanto ao status legal não se sustenta quando se observa, por exemplo, a estruturação do Poder Judiciário, que apenas admite rito em língua castelhana, sendo que as demais línguas apenas são admitidas para a produção de provas e em outras situações extraordinárias em que o castelhano não possa ser satisfatoriamente empregado.

·       catalão e valenciano

O catalão é falado por cerca de 11 milhões de falantes, distribuídos pelas seguintes regiões: Catalunha (exceto o Vale de Arán), faixa oriental de Aragão, Ilhas Baleares e Valência (sobretudo no litoral); fora da Espanha, o catalão também é falado no Departamento dos Pirineus Orientais na França (onde não é língua reconhecida oficialmente), no Principado de Andorra (onde é língua oficial, ao lado do castelhano e do francês) e na cidade de Alghero, na Sardenha, Itália (onde não é língua reconhecida oficialmente).

Considera-se o catalão a língua minoritária mais importante da Europa. Na verdade é contestável seu título de “minoritária”, haja vista sua proeminência nos territórios onde é falada e a peculiaridade de gozar de alto prestígio entre os falantes. Nas ruas de Barcelona vigora um bilingüismo estrito para todos os usos, com uma sensível predileção pelo catalão no trato social e destaque nas placas públicas. Atualmente, no contexto do debate sobre a proposta de um novo Estatuto de Autonomia para a Catalunha, tem-se discutido a disposição que pretende tornar a língua catalã obrigatória tanto quanto o castelhano, questionando-se se tal disposição não seria inconstitucional.

O valenciano, falado na Comunidade Valenciana principalmente na região litorânea, é considerado pelos lingüistas como uma variante do catalão. No entanto, por questões meramente políticas, em março de 2006 a Comunidade Valenciana optou por reconhecer, em seu Estatuto de Autonomia, o valenciano como uma língua autônoma em relação ao catalão. A questão principal é de simples denominação: diz-se que o “catalão” é a língua da Catalunha, enquanto que o “valenciano” seria a língua de Valência (obviamente o fundamento científico para tal distinção é bastante frágil). O valenciano goza, em sua área de ocorrência, de todas as prerrogativas legais de uma língua co-oficial.

·       basco

O basco atualmente é falado por cerca de 600 mil a 700 mil falantes (chamados de euskaldunak), nas Comunidades Autônomas de País Basco e Navarra, na Espanha, e no Departamento de Pirineus Ocidentais, na França, onde não é reconhecido oficialmente.

O basco é a única língua não indo-européia falada na Europa Ocidental e a mais antiga de toda a Europa. Não se sabe ao certo sua origem e não se reconhece sua filiação a qualquer dos ramos lingüísticos que abarcam as línguas vivas nos dias de hoje. Sabe-se apenas que é anterior às primeiras invasões celtas na Península Ibérica, a cuja língua sobreviveu, assim como sobreviveu à imposição do latim durante o Império Romano, às invasões e às línguas germânicas, à dominação árabe na Península e, mais recentemente, à inescapável sobreposição do castelhano e do francês. O seu léxico peculiar e a sua estrutura gramatical tida como de difícil aprendizado para os não nativos, com seus cerca de 24 casos de declinação, sempre fizeram do basco uma língua suscetível a mitos e preconceitos de diversas ordens, sobretudo à vista dos falantes dos ibero-romances que o rodeiam.

·       galego

O galego é falado, hoje, por cerca de 3 milhões a 4 milhões de pessoas, na região da Galiza[3] e na parte ocidental do Principado de Astúrias. É reconhecido pela grande maioria dos lingüistas como parte de um sistema (ou diassistema) lingüístico chamado de galego-português, que, na Península Ibérica, engloba a língua galega e o português. No entanto, por razões de ordem eminentemente política, tem-se evitado reconhecer oficialmente tal filiação, optando-se por atribuir-lhe um status lingüístico artificial, ao arrepio dos critérios sócio-lingüísticos mais bem assentados.

Isso se observa sobretudo na recente normalização da língua galega, em que se optou por um sistema ortográfico bastante próximo do castelhano, em vez de se utilizar dos recursos de representação fonética existentes no português, o que na opinião dos lingüistas seria o mais adequado a uma língua em processo de formalização como o galego. Além disso, alguns setores da sociedade acusam a Real Academia de Língua Galega de incorporar de modo temerário muitos castelhanismos ao léxico oficial da língua, não lhes sendo aplicados os severos filtros por que passam os lusitanismos incidentais.

Em reação a esse posicionamento, têm surgido grupos que pregam o reconhecimento do galego e do português como parte de uma mesma família lingüística, de modo a manter a unidade da “galego-lusofonia”. Destaque para o Manifesto Unitário Reintegracionista, que defende a adoção da norma portuguesa para a escrita em língua galega (na internet podem ser encontrados muitos textos galegos, literários ou não, que adotam a ortografia da língua portuguesa). Vê-se, portanto, que a adoção da ortografia oficial do galego levou em conta critérios sobretudo políticos.

3.2. Línguas com legislação parcial

Consideram-se como línguas com legislação parcial as línguas que não são expressamente reconhecidas como tais nos Estatutos de Autonomia das regiões onde são faladas, não sendo, portanto, co-oficiais com o castelhano, como ocorre com as línguas com legislação plena. Nesta categoria se enquadram o aragonês, o asturiano, o estremenho e o aranês.

Na legislação local dessas línguasapenas referência a elas e à suaproteção”, o que não é suficiente para atribuir-lhes um status de oficialidade, o que poderia assegurar, entre outras coisas, o seu emprego na escolarização. Em seus domínios é o castelhano que permanece como língua de prestígio, empregado nos meios sociais, enquanto que a língua local é reservada para o trato familiar.


·       aragonês

O aragonês é a língua de cerca de 30 mil falantes ativos, que têm uma média de idade elevada. É empregada no norte de Aragão, onde a alfabetização é feita praticamente 100% em castelhano. O aragonês é por vezes tido como umdialeto” do castelhano, dada a proximidade das duas línguas. Não possui uma legislação específica tratando de seu emprego ou normalização.

·       asturiano

O asturiano é uma língua falada por cerca de 100 mil falantes nativos, mais 450 mil que a têm como segunda língua, circunscrita ao Principado de Astúrias (exceto a parte ocidental), Cantábria e norte de Castela-Leão. Pertence à família do asturiano-leonês, à qual também pertencem o mirandês, falado na região de Miranda do Douro, em Portugal, e o estremenho. Existe uma lei de 1998 que protege e defende o asturiano, embora não disponha sobre o seu uso administrativo nem escolar.

·       estremenho

O estremenho possui cerca de 200 mil falantes regulares no norte de Estremadura. Não possui uma normalização específica e não é empregado no sistema de ensino. Derivada do ramo asturiano-leonês, seus falantes preferem a língua local nos ambientes familiares, reservando o castelhano para situações sociais e a atividade intelectual (leitura etc.).

·       aranês

O aranês é uma língua bastante restrita, empregada por cerca de 3.800 falantes, além de cerca de 1.300 pessoas que a entendem, estando circunscrita à região do Vale de Arán, no norte da Catalunha. Sua situação legal é bastante peculiar, por dois motivos: (i) é reconhecida pelo Estatuto de Autonomia da Catalunha, que não devolveu prestígio ao catalão como também teve o cuidado de proteger o aranês,[4] que veio assim a se constituir numa espécie de exceção da exceção, uma autonomia dentro da autonomia; e (ii) o fato de ser a única variante do occitano que goza de algum grau de oficialidade, apesar de diversas variantes do occitano serem faladas em vastas regiões da França e Itália, sendo que isto veio curiosamente a ocorrer justo no contexto ibérico, onde o aranês não possui familiaridades com os demais romances locais e em que constitui uma espécie de enclave lingüístico.

3.3. Línguas criadas por decreto

Podemos chamar de “línguas criadas por decreto” àquelas instituídas pelas legislações regionais sem bases sócio-lingüísticas que o justifiquem. Isso geralmente ocorre quando o legislador de uma determinada região não quer reconhecer oficialmente a filiação de uma língua falada naquela circunscrição, optando por conceder-lhe uma identidade que não é a sua. Assim, por meio de uma simples lei, um enclave lingüístico se converte em uma língua nova. É o caso do galego-asturiano ou eonaviego e do fala.

·       galego-asturiano ou eonaviego

O galego-asturiano ou eonaviego é como é conhecida a variante dialetal da língua galega falada na parte ocidental do Principado de Astúrias. Tem a peculiaridade de ter sofrido grande influência do asturiano, mas a maioria dos lingüistas reconhece sua filiação ao galego. Ocorre que o governo do Principado e a Academia de Língua Asturiana normalizaram o galego-asturiano conforme a norma asturiana, ignorando por completo a norma galega. Apesar disso, ao que consta a literatura em galego-asturiano desconsidera a norma asturiana e emprega sobretudo a norma do galego.

·       fala

A língua conhecida como fala é uma variante do galego empregada no norte de Estremadura. A legislação comunitária não a reconhece como variedade do galego, optando apenas por identificá-la como uma variedade lingüística a ser protegida, referindo-se incidentalmente a ela apenas comoa fala”.

3.3.1. Casos especiais

Em contrapartida a esses exemplos de línguas criadas por decreto, é importante mencionar alguns casos em que as legislações regionais reconhecem ordinariamente a filiação lingüística de uma língua falada em seu território. É o caso do galego, reconhecido como tal em Castela-Leão; do basco, em Navarra; e do catalão, na faixa oriental de Aragão.

Nesta categoria de línguas criadas por decreto poderia ser também incluído o valenciano, que, conforme mencionado, é considerado pelos lingüistas como uma variedade do catalão e goza do status de língua autônoma por disposição expressa do Decreto de Autonomia da Comunidade Valenciana. No entanto o valenciano goza em sua região de todas as prerrogativas de que gozam as línguas com legislação plena, como o status de co-oficialidade, emprego no sistema de educação e prestígio entre os falantes.

3.4. Línguas não reconhecidas

Nesta categoria se incluem as línguas que não gozam de qualquer reconhecimento ou proteção oficial nas regiões onde são faladas. É o caso do andaluz (Andaluzia), do murciano (Múrcia) e do português falado em regiões fronteiriças da Espanha em contato com Portugal.

4. Situação de Gibraltar

Convém aqui mencionar a situação especial da língua inglesa na Península Ibérica. Em 1713, com o Tratado de Utrecht, o território de Gibraltar foi cedido à Grã-Bretanha como parte do pagamento da Guerra de Sucessão Espanhola. Desde então, Gibraltar é uma possessão britânica e constitui um enclave lingüístico da língua inglesa, que é a língua oficial do território. Paralelamente ao inglês também se falam o castelhano e o “llanito”, que é uma mistura de inglês com espanhol e que não tem reconhecimento oficial.

5. Situação de Andorra

O Principado de Andorra tem como chefes de Estado, ou co-príncipes, o presidente da República Francesa e o bispo da comarca catalã de Urgel. A língua oficial do Principado é o catalão, mas o castelhano e o francês também são empregados na administração pública e no sistema de educação oficial.

6. Conclusão

A situação jurídica das línguas na Península Ibérica é tão variada quanto o é a sua diversidade lingüística. Portugal, Andorra e Gibraltar apresentam situações peculiares, com características muito próprias, mas todos fruindo de um estável e bem definido regime jurídico de línguas. O caso que merece mais atenção é o da Espanha.

À primeira vista, a atual legislação espanhola parece bastante progressista com relação às línguas faladas em seu território, sobretudo quando vista em perspectiva histórica e comparada com a de países vizinhos, como a França. No entanto a situação lingüística no país está longe de ser invejável.

A diferença de status jurídico das línguas espanholas regionais ainda é uma questão a ser resolvida, em especial quanto à obrigatoriedade de conhecimento apenas da língua castelhana, em contraste com o mero direito de conhecimento das demais línguas. Também está pendente de definição o problema do reconhecimento local de uma língua não-dominante quando falada em mais de uma comunidade autônoma, como ocorre com as variantes do galego faladas em Astúrias e Estremadura.

É sabido que a definição de língua não é um conceito universal, sofrendo fortes variações em função de aspectos culturais. No caso da Espanha, contudo, a definição de língua tem se orientado por critérios eminentemente políticos, em detrimento de critérios sociais e lingüísticos.

7. Bibliografia consultada

CONDE, Francisco Xavier Frías. Lexislación e escolarización das linguas non-dominantes no ámbito ibérico. Disponível em: . Acessado em: 30/3/06.

PROEL. Promotoría Española de Lingüística. Acervo disponível em: .

SILVA, Inmaculada López. A lingua galega e as leis: notas para reflexión. Disponível em: . Acessado em: 30/3/06.

WALTER, Henriette. A aventura das línguas no ocidente: origem, história e geografia. 3a. ed. São Paulo: Mandarim, 1997.

WIKIPEDIA – Enciclopédia Livre. Disponível em: .



* É advogado; bacharel em Direito e mestre pela USP; estudante de Letras; poeta (autor do livro Medianeira, Quinze & Trinta, 2005). Também é tradutor do castelhano e estudante de basco e catalão.
[1] “Artículo 2: La Constitución se fundamenta en la indisoluble unidad de la Nación española, patria común e indivisible de todos los españoles, y reconoce y garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones que la integran y la solidaridad entre todas ellas.”
[2] Tradução livre: “1. O castelhano é a língua espanhola oficial do Estado. Todos os espanhóis têm o dever de conhecê-la e o direito de usá-la. 2. As demais línguas espanholas serão também oficiais nas respectivas Comunidades Autônomas de acordo com seus Estatutos. 3. A riqueza das diferentes modalidades lingüísticas da Espanha é um patrimônio cultural que será objeto de especial respeito e proteção.”
[3] A região setentrional mais ocidental da Espanha chama-se Galiza, tanto em português quanto em galego. “Galícia” é um espanholismo bastante recorrente, sobretudo no Brasil, mas ainda assim inadequado para designar essa região.
[4] Estatuto de Autonomia da Catalunha:
"Artículo 36. Derechos con relación al aranés.
1. En Arán todas las personas tienen el derecho a conocer y utilizar el aranés y a ser atendidas oralmente y por escrito en aranés en sus relaciones con las Administraciones públicas y con las entidades públicas y privadas que dependen de las mismas.
2. Los ciudadanos de Arán tienen el derecho a utilizar el aranés en sus relaciones con la Generalitat.
3. Deben determinarse por Ley los demás derechos y deberes lingüísticos con relación al aranés."