15 de dezembro de 2013

SAÚDE PÚBLICA VERSUS COMÉRCIO INTERNACIONAL: Acesso a medicamentos no Brasil à luz do Direito Internacional


Fábio Aristimunho Vargas

Resumo: O presente estudo procura analisar o tratamento dispensado pelo ordenamento jurídico brasileiro à propriedade intelectual e ao direito de acesso a medicamentos, em consonância com o Direito Internacional, abordando aspectos históricos de sua evolução legislativa e a experiência brasileira concernente à restrição aos direitos de propriedade intelectual em casos de necessidades de saúde pública, sobretudo quanto à concessão de licenças compulsórias.

Palavras-chaves: propriedade intelectual; comércio internacional; licença compulsória.

PUBLIC HEALTH V. INTERNATIONAL TRADE:
Access to medicines in Brazil under International Law


Abstract: This study seeks to examine the treatment by Brazilian Law to intellectual property rights and the access to medicines rights, in line with International Law, addressing historical aspects of its legislative developments and Brazilian experience concerning to restriction of intellectual property rights in case of public health needs.

Key words: intellectual property rights; international commerce; compulsory license.







1      Breve histórico da proteção à propriedade intelectual na legislação brasileira


A lei imperial que instituiu os cursos jurídicos no Brasil, de 1827, acabou por introduzir, de modo inusitado e intempestivo, as primeiras disposições acerca da proteção à propriedade intelectual do ordenamento jurídico brasileiro. Veja-se o que dispõe, mantida a ortografia original, a Lei de 11 de agosto de 1827, que “Crêa dous Cursos de sciencias Juridicas e Sociaes, um na cidade de S. Paulo e outro na de Olinda”:

Art. 7.º - Os Lentes farão a escolha dos compendios da sua profissão, ou os arranjarão, não existindo já feitos, com tanto que as doutrinas estejam de accôrdo com o systema jurado pela nação. Estes compendios, depois de approvados pela Congregação, servirão interinamente; submettendo-se porém á approvação da Assembléa Geral, e o Governo os fará imprimir e fornecer ás escolas, competindo aos seus autores o privilegio exclusivo da obra, por dez annos.

Essa lei, que criou os cursos jurídicos no Brasil, que viriam a ser instalados no ano seguinte em São Paulo e logo depois em Olinda, estipulava, conforme visto, o privilégio para o autor de explorar sua obra pelo prazo de dez anos. Trata-se de um prazo exíguo sob qualquer ponto de vista, especialmente por referir-se a obras a serem produzidas pelos maiores especialistas do país. Mesmo assim, é preciso reconhecer que constituía um significativo avanço o fato de haver alguma proteção já àquela época. A título de comparação, no sistema atualmente em vigor no país (Lei 9610/98, art. 41) protegem-se os direitos patrimoniais do autor “por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento”.
A Lei de 28 de agosto de 1830, que “Concede privilegio ao que descobrir, inventar ou melhorar uma industria util e um premio ao que introduzir uma industria estrangeira”, introduziu no Brasil a proteção patentária, nos seguintes termos, mantida a ortografia original:

Art. 4º. O direito do descobridor, ou inventor, será firmado por uma patente, concedida gratuitamente, pagando só o sello, e o feitio; e para conseguil-a:
1º. Mostrará por escripto que a industria, a que se refere, é da sua propria invenção, ou descoberta.
2º. Depositará no Archivo Publico uma exacta e fiel exposição dos meios e processos, de que se serviu, com planos, desenhos ou modelos, que os esclareça, e sem elles, se não puder illustrar exactamente a materia.

A proteção se estendia de cinco a no máximo vinte anos, segundo a qualidade da descoberta ou invenção. Curiosamente, já naquela época previam-se hipóteses de limitação ao direito de patente em função de interesse público, como quando o agraciado não pusesse em prática a invenção ou descoberta dentro de dois anos de concedida a patente (art. 10, 3º) ou quando o “gênero manufaturado ou fabricado” fosse reconhecidamente nocivo ao público ou contrario às leis (art. 10, 5º). Assim, o conceito de exploração local da patente foi introduzido, no Brasil, pela lei de patentes de 1830, que em seu art. 10-3º previa a revogação do direito no caso de não exploração.
Já a Lei n. 3.129 de 1882 estabelecia não só a revogação decorrente da não exploração, como também a possibilidade de limitação dos direitos concedidos pela patente a uma região em que a produção de certos produtos era insuficiente para a demanda do mercado.
No âmbito do Direito Internacional o Brasil mantém um histórico de vanguarda com relação à adoção de normas internacionais sobre propriedade intelectual, a despeito de certos momentos de ofuscamento dessa característica. O país sempre esteve entre os primeiros a adotar os tratados sobre o assunto, tendo sido o único signatário latino-americano da Convenção de Paris de 1883 e signatário original da Convenção de Berna de 1886. O país tardou, no entanto, a adotar a revisão de Estocolmo da Convenção de Paris, firmada em 1967. Isso se explica pela errática política industrial adotada pelo governo de então, que privilegiava a substituição de importações e buscava desenvolver determinados setores estratégicos da indústria. Por isso, a partir do final da década de 60, o país passou a não mais admitir o patenteamento de invenções e processos nas áreas farmacêutica, alimentícia e química.
O conceito de licença compulsória somente seria introduzido no Brasil com o primeiro Código de Propriedade Industrial, Decreto-Lei n. 7.903/45, que previa a concessão de licenças compulsórias nas situações em que a patente não tivesse sido explorada nos dois anos seguintes à sua concessão, ou quando sua exploração tenha sido injustificadamente interrompida por um período de tempo superior a dois anos. Além disso, esta legislação estabelecia os procedimentos relativos à obtenção de licença compulsória, aos direitos do licenciado e do licenciador e às razões para seu cancelamento. Embora este Código tenha vigorado por vinte e dois anos, segundo MÔNICA S. GUISE nenhuma licença compulsória foi concedida (GUISE, 2004, p. 272).
Durante o governo militar, três Códigos de Propriedade Industrial estiveram em vigor: os Códigos de 1967, 1969 e 1971. Isso se deveu à pressão da indústria farmacêutica nacional e a um sentimento de nacionalismo exacerbado então vigente, assim como a um questionamento, no âmbito internacional, do sistema de patentes por parte dos países em desenvolvimento. Esses três Códigos previam a licença compulsória em condições similares ao Código de 1945 acerca da concessão e da revogação.
No Código de 1967, a grande novidade foi a introdução de licenças compulsórias não exclusivas em prol do interesse público, ao mesmo tempo em que a exploração local de uma patente não poderia ser substituída, complementada nem suplementada por importação.
O Código de 1969 manteve as disposições do Código anterior acerca da licença compulsória e vetou as patentes de medicamentos e alimentos, em seu art. 8º, alínea ‘c’.
Em 1970 foi criado um novo escritório de patentes, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI e, em 1971, um novo Código manteve as disposições gerais das legislações anteriores. O Código de 1971 vigorou até 1997.
Entre 1967 e 1971, conforme visto, nenhuma licença compulsória foi concedida no Brasil e, entre 1971 e 1997, “três licenças compulsórias foram concedidas: as primeiras desde a introdução do instituto na legislação brasileira. Duas delas foram concedidas para a patente de uma vacina (fundadas no interesse público) e a outra foi concedida porque a exploração foi considerada insuficiente para atender aos requisitos estabelecidos no texto legal” (GUISE, 2004, p. 273).
O Código de 1971 considerava como não patenteáveis as substâncias, matérias, misturas ou produtos alimentícios, químico-farmacêuticos e medicamentos, de qualquer espécie, assim como seus respectivos de processos de obtenção ou modificação. Por conta dessa legislação, o Brasil era alvo de retaliações no comércio internacional. O ambiente histórico de então era marcado pelas políticas comerciais protecionistas de cunho nacionalista, que propugnavam por um modelo industrial brasileiro sustentado em uma política de substituição de importações, o que a longo prazo resultou em um modelo industrial obsoleto e ultrapassado.
Com a Constituição de 1988, foi consagrado o “interesse social” na proteção dos direitos de propriedade intelectual, como se depreende de seu art. 5º, inc. XXIX: “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”. Esse dispositivo assegura a tutela da propriedade intelectual em nível constitucional com base no interesse social. Mas não se pode perder de vista o caráter temporário dessa proteção, o que também está de acordo com o referido interesse social.
Nos anos 90, com a introdução de novas políticas liberalizantes no Brasil como as privatizações, redução das tarifas de importação, negociações multilaterais de comércio, o ambiente se tornou propício a uma nova legislação sobre propriedade intelectual. A década de 1990 viu, portanto, o país retornar ao pleno regime internacional de proteção à propriedade intelectual, com a nova política industrial do governo.
Em 1993, com a conclusão das negociações multilaterais da Rodada Uruguai, que redundaram na celebração do Acordo Constitutivo da OMC, foi introduzido o novo sistema de regulamentação da propriedade intelectual no comércio internacional com a adoção do Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs, na sigla em inglês) sem o emprego dos prazos de carência. Esse tratado internacional foi incorporado à legislação nacional por meio do Decreto 1.355, de 31 de dezembro de 1994, que promulgou a Ata Final que Incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT.
Aos países emergentes, entre os quais o Brasil, foi facultado introduzir as regras do Acordo TRIPs em sua legislação nacional até 2000. O Brasil, no entanto, optou por não fazer uso integral do prazo adicional, sendo que, por meio do Decreto Legislativo n. 30, de 15 de dezembro de 1994, e do Decreto 1.355, de 30 de dezembro de 1994, introduziu as normas que estabeleciam um patamar mínimo de garantias e direitos no ordenamento jurídico nacional. Essa legislação entrou em vigor em 1º de janeiro de 1995.
O Acordo TRIPs promoveu modificações profundas no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente com relação à patenteabilidade de produtos e processos farmacêuticos, o que acabou por reintroduzir o Brasil no contexto do comércio internacional globalizado.
A Lei da Propriedade Industrial, Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996, atualmente em vigor, regulamenta direitos e obrigações relacionados a patentes de invenção e de modelos de utilidade, registro de desenho industrial, registro de marcas, indicações geográficas e concorrência desleal. Essa lei tece o mérito de reintroduzir no país o patenteamento de produtos farmacêuticos, alimentícios e de substâncias químicas em geral. O capítulo VIII, sessão III, trata da licença compulsória e prevê a situações para a sua  concessão, tais como (i) licença por abuso de direitos, (ii) licença por abuso de poder econômico, (iii) licença por não exploração ou exploração insuficiente, (iv) licença por não satisfação das necessidades do mercado, (v) licença por dependência e, por fim, (vi) licença por emergência nacional ou interesse público. Também há a disposição do art. 91, § 2º, que trata da licença que o empregado cotitular da patente confere ao empregador.
A licença compulsória para prevenir abusos do titular no exercício de seus direitos ou abuso do poder econômico está prevista no art. 68 da Lei. O § 1º desse artigo trata da licença compulsória no caso de exploração incompleta, de não atendimento comercial do mercado e da não exploração do objeto da patente em território brasileiro. O art. 70 prevê a concessão de licenças compulsórias para patentes dependentes e o art. 71 trata da emergência nacional e do interesse público.

2      Exaustão de direitos e importação paralela no Brasil


Exaustão de direitos, também chamada de esgotamento de direitos, é o momento em que se esgota o direito que o titular tem sobre uma patente. Esse momento normalmente se dá com primeira colocação, pelo titular da patente ou por seu licenciado, de um produto à venda em um determinado mercado. A partir desse momento, o titular da patente não mais poderá impedir a revenda do produto nem poderá reclamar nenhum direito adicional, já que seus direitos se esgotaram. O adquirente que legalmente adquiriu o produto objeto da patente poderá então comercializá-lo sem oposição do titular da patente.
A importação paralela se fundamenta no princípio da exaustão internacional de direitos. É caracterizada pela entrada de um produto legítimo em um mercado para o qual não era originalmente direcionado. O importador que adquire o produto genuíno no exterior é, por definição, diverso do detentor (distribuidor ou licenciado) do direito exclusivo de utilizar a marca ou a patente em um determinado território.
A Lei de Propriedade Industrial brasileira atualmente em vigor claramente privilegia a fabricação no país do objeto da proteção patentária, atendendo a uma tradicional política governamental de promover a geração de empregos e riquezas no território brasileiro. Essa política, contudo, se encontra hoje harmonizada com os princípios que emanam do Acordo TRIPs, especialmente quanto a três matérias particulares: a exploração local do objeto da patente, a importação paralela e a licença compulsória para o titular da patente que não estiver explorando seu objeto no território nacional.
O art. 42 da referida lei dispõe que “a patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos: I - produto objeto de patente; II - processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado”.
Na sequência, o art. 43-IV determina expressamente que não constitui infração à patente os atos de comercialização relativos “a produto fabricado de acordo com patente de processo ou de produto que tiver sido colocado no mercado interno diretamente pelo titular da patente ou com seu consentimento”.
Entende-se, assim, que o titular pode impedir a importação do produto patenteado ou do produto obtido por processo patenteado, resultando que a exaustão de direitos somente se opera com relação ao produto colocado no mercado interno (exaustão nacional de direitos). Em consequência, o titular tem o direito de impedir que um terceiro faça a importação não autorizada de um produto (importação paralela), mesmo se o produto tenha sido colocado no mercado externo pelo próprio titular.
Atente-se que a opção pela exaustão nacional para patentes, como norma geral adotada pela lei brasileira, foi deliberadamente tomada pelo legislador. Nos projetos de lei que antecederam a atual Lei de Propriedade Industrial, o atual inc. IV do art. 43 fazia menção também ao mercado externo, que acabou sendo suprimida (Cf. SILVEIRA, 1996, P. 79).
Pelo art. 68, § 1o., I, da referida Lei, a importação é facilitada não apenas ao titular da patente, mas também a terceiros:

Art. 68. O titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial.
Parágrafo 1o. Ensejam, igualmente, licença compulsória:
I - a não exploração do objeto da patente no território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta do produto, ou, ainda, a falta de uso integral do processo patenteado, ressalvados os casos de inviabilidade econômica, quando será admitida a importação; (…) [sem grifo no original]

Segundo Simone Scholze, o mérito desse dispositivo “não é propriamente exigir a fabricação local, mas impedir que haja monopólio de importação – a importação incide como sanção para quem injustificadamente não fabrica no Brasil” (SCHOLZE, 2001, P.11).
O § 4º do art. 68 da Lei 9.279 estipula que, no caso de importação para exploração da patente, será admitida a importação paralela por terceiros. De acordo com uma leitura conjunta dos artigos 42 e 43, IV, da Lei, o titular, de uma forma geral, tem o direito de opor sua patente à importação não autorizada do produto patenteado, ainda que ele tenha sido colocado no mercado externo pelo titular ou com seu consentimento. Desta forma, mesmo que se admita a exploração por importação, a lei impõe uma penalidade, que é a cassação do direito assegurado pela patente de impedir a importação paralela.
Nesse sentido, a Associação Brasileira da Propriedade Intelectual faz a seguinte interpretação com relação ao Acordo TRIPs:

2.2. Embora o artigo 6 do TRIPS exclua, textualmente, as questões relativas à exaustão dos direitos de propriedade intelectual do escopo do acordo, isso não altera o fato de que, como consequência de uma discriminação não autorizada pelo artigo 27.1, os direitos garantidos pela patente são restringidos. Ou seja, embora os países membros sejam livres para determinar o âmbito em que ocorre a exaustão, uma vez determinada a extensão dos direitos do titular nesse aspecto, eles não deveriam ser afetados por uma discriminação relativa ao local de fabricação do produto patenteado. (ABPI, Resolução n. 7)

Vê-se, desse modo, que a Lei de Propriedade Industrial brasileira privilegia a fabricação local, sem, entretanto, impedir a importação do produto patenteado pelo titular ou por terceiros caso a produção local seja inviável.

3      O licenciamento compulsório de patentes de medicamentos no Brasil


Licença compulsória é a autorização para o uso de uma invenção sem o consentimento do titular da patente, que pode ser concedida, pela autoridade governamental competente, a um terceiro ou a um organismo governamental. Essa flexibilidade do direito de patente está expressamente prevista e regulada pelo art. 31 do Acordo TRIPs.

ART.31 - Quando a legislação de um Membro permite outro uso(7) do objeto da patente sem autorização de seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo Governo, as seguintes disposições serão respeitadas:
[nota original] (7) O termo "outro uso" refere-se ao uso diferente daquele permitido pelo art. 30.
    a) a autorização desse uso será considerada com base no seu mérito individual;
    b) esse uso só poderá ser permitido se o usuário proposto tiver previamente buscado obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável. Essa condição pode ser dispensada por um Membro em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não comercial. No caso de uso público não comercial, quando o Governo ou o contratante sabe ou tem base demonstrável para saber, sem proceder a uma busca, que uma patente vigente é ou será usada pelo ou para o Governo, o titular será prontamente informado;
     c) o alcance e a duração desse uso será restrito ao objetivo para o qual foi autorizado e, no caso de tecnologia de semicondutores, será apenas para uso público não comercial ou para remediar um procedimento determinado como sendo anticompetitivo ou desleal após um processo administrativo ou judicial;
    d) esse uso será não exclusivo;
    e) esse uso não será transferível, exceto conjuntamente com a empresa ou parte da empresa que dele usufrui;
    f) esse uso será autorizado predominantemente para suprir o mercado interno do Membro que o autorizou;
    g) sem prejuízo da proteção adequada dos legítimos interesses das pessoas autorizadas, a autorização desse uso poderá ser terminada se e quando as circunstâncias que o propiciaram deixarem de existir e se for improvável que venham a existir novamente. A autoridade competente terá o poder de rever, mediante pedido fundamentado, se essas circunstâncias persistem;
    h) o titular será adequadamente remunerado nas circunstâncias de cada uso, levando-se em conta o valor econômico da autorização;
    i) a validade legal de qualquer decisão relativa à autorização desse uso estará sujeita a recurso judicial ou a outro recurso independente junto a uma autoridade claramente superior naquele Membro;
    j) qualquer decisão sobre a remuneração concedida com relação a esse uso estará sujeita a recurso judicial ou outro recurso independente junto a uma autoridade claramente superior naquele Membro;
    k) os Membros não estão obrigados a aplicar as condições estabelecidas nos subparágrafos "b" e "f" quando esse uso for permitido para remediar um procedimento determinado como sendo anticompetitivo ou desleal após um processo administrativo ou judicial. A necessidade de corrigir práticas anticompetitivas ou desleais pode ser levada em conta na determinação da remuneração em tais casos. As autoridades competentes terão o poder de recusar a terminação da autorização se e quando as condições que a propiciaram forem tendentes a ocorrer novamente;
    l) quando esse uso é autorizado para permitir a exploração de uma patente ("a segunda patente") que não pode ser explorada sem violar outra patente ("a primeira patente"), as seguintes condições adicionais serão aplicadas:
ART.31 - Quando a legislação de um Membro permite outro uso(7) do objeto da patente sem autorização de seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo Governo, as seguintes disposições serão respeitadas:
[nota original] (7) O termo "outro uso" refere-se ao uso diferente daquele permitido pelo art. 30.
    a) a autorização desse uso será considerada com base no seu mérito individual;
    b) esse uso só poderá ser permitido se o usuário proposto tiver previamente buscado obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável. Essa condição pode ser dispensada por um Membro em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não comercial. No caso de uso público não comercial, quando o Governo ou o contratante sabe ou tem base demonstrável para saber, sem proceder a uma busca, que uma patente vigente é ou será usada pelo ou para o Governo, o titular será prontamente informado;
     c) o alcance e a duração desse uso será restrito ao objetivo para o qual foi autorizado e, no caso de tecnologia de semicondutores, será apenas para uso público não comercial ou para remediar um procedimento determinado como sendo anticompetitivo ou desleal após um processo administrativo ou judicial;
    d) esse uso será não exclusivo;
    e) esse uso não será transferível, exceto conjuntamente com a empresa ou parte da empresa que dele usufrui;
    f) esse uso será autorizado predominantemente para suprir o mercado interno do Membro que o autorizou;
    g) sem prejuízo da proteção adequada dos legítimos interesses das pessoas autorizadas, a autorização desse uso poderá ser terminada se e quando as circunstâncias que o propiciaram deixarem de existir e se for improvável que venham a existir novamente. A autoridade competente terá o poder de rever, mediante pedido fundamentado, se essas circunstâncias persistem;
    h) o titular será adequadamente remunerado nas circunstâncias de cada uso, levando-se em conta o valor econômico da autorização;
    i) a validade legal de qualquer decisão relativa à autorização desse uso estará sujeita a recurso judicial ou a outro recurso independente junto a uma autoridade claramente superior naquele Membro;
    j) qualquer decisão sobre a remuneração concedida com relação a esse uso estará sujeita a recurso judicial ou outro recurso independente junto a uma autoridade claramente superior naquele Membro;
    k) os Membros não estão obrigados a aplicar as condições estabelecidas nos subparágrafos "b" e "f" quando esse uso for permitido para remediar um procedimento determinado como sendo anticompetitivo ou desleal após um processo administrativo ou judicial. A necessidade de corrigir práticas anticompetitivas ou desleais pode ser levada em conta na determinação da remuneração em tais casos. As autoridades competentes terão o poder de recusar a terminação da autorização se e quando as condições que a propiciaram forem tendentes a ocorrer novamente;
    l) quando esse uso é autorizado para permitir a exploração de uma patente ("a segunda patente") que não pode ser explorada sem violar outra patente ("a primeira patente"), as seguintes condições adicionais serão aplicadas:
i) a invenção identificada na segunda patente envolverá um avanço técnico importante de considerável significado econômico em relação à invenção identificada na primeira patente;
ii) o titular da primeira patente estará habilitado a receber uma licença cruzada, em termos razoáveis, para usar a invenção identificada na segunda patente; e
iii) o uso autorizado com relação à primeira patente será não transferível, exceto com a transferência da segunda patente.

Em março de 2001, o governo brasileiro, ameaçando fornecer licenciamento compulsório para a produção dos medicamentos Efavirenz e Indinavir, utilizados no tratamento do HIV e produzidos por laboratório estrangeiro instalado no país, forçou uma revisão do contrato de fornecimento com o detentor da patente com vistas à redução dos preços.
Esse precedente motivou a que o governo brasileiro apresentasse, na 54ª Assembleia Mundial da Saúde, ocorrida em Genebra, em maio de 2001, uma proposta de reconhecimento do acesso a medicamentos para a Aids como um direito humano fundamental, proposta essa que sofreu fortes resistências, em especial dos governos de países que sediam grandes multinacionais do setor farmacêutico. No final, os países membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovaram por unanimidade a declaração proposta pelo governo brasileiro.
Em agosto de 2001 o governo brasileiro voltou a obter expressiva redução de preço de medicamentos de combate à Aids, desta vez sobre o fármaco Nelfinavir. Novamente, mediante a ameaça de abertura de processo de licença compulsória, que foi suspenso após a negociação com o laboratório produtor.
Desde então, o programa brasileiro de prevenção e tratamento da Aids, baseado principalmente na produção local de medicamentos genéricos, passou a ser frequentemente apontado por organismos internacionais como um modelo a ser seguido pelo países em desenvolvimento.
Em 14 de novembro de 2001, os então cento e quarenta e dois países membros da OMC aprovam em Doha a “Declaração Ministerial sobre TRIPs e Saúde Pública”, garantindo que o Acordo sobre Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio não se sobreporá a questões relacionadas à saúde pública.
Em 2007 o governo brasileiro determinou, por meio do Decreto n. 6.108/07, seu primeiro licenciamento compulsório, referente a duas patentes do medicamento Efavirenz, de titularidade do laboratório estadunidense Merck, Sharp & Dohme. A medida resultou do fracasso das negociações entre as partes com vistas ao estabelecimento de um preço razoável para o princípio ativo, empregado no coquetel de combate ao HIV e distribuído gratuitamente pelo governo brasileiro para pacientes contaminados pelo vírus por meio de seu Programa Nacional de DST/Aids. Reproduz-se abaixo, na íntegra por pertinente, o texto do referido decreto:

DECRETO Nº 6.108, DE 4 DE MAIO DE 2007.
Concede licenciamento compulsório, por interesse público, de patentes referentes ao Efavirenz, para fins de uso público não-comercial.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto nos arts. 71 da Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996, e 4º do Decreto no 3.201, de 6 de outubro de 1999, 
DECRETA: 
Art. 1º Fica concedido, de ofício, licenciamento compulsório por interesse público das Patentes nos 1100250-6 e 9608839-7. 
§ 1º O licenciamento compulsório previsto no caput é concedido sem exclusividade e para fins de uso público não-comercial, no âmbito do Programa Nacional de DST/Aids, nos termos da Lei no 9.313, de 13 de novembro de 1996, tendo como prazo de vigência cinco anos, podendo ser prorrogado por até igual período. (Prorrogação de prazo)
§ 2º O licenciamento compulsório previsto no caput extinguir-se-á mediante ato do Ministro de Estado da Saúde, se cessarem as circunstâncias de interesse público que o determinaram. 
Art. 2º A remuneração do titular das patentes de que trata o art. 1º é fixada em um inteiro e cinco décimos por cento sobre o custo do medicamento produzido e acabado pelo Ministério da Saúde ou o preço do medicamento que lhe for entregue. 
Art. 3º O titular das patentes licenciadas no art. 1º está obrigado a disponibilizar ao Ministério da Saúde todas as informações necessárias e suficientes à efetiva reprodução dos objetos protegidos, devendo a União assegurar a proteção cabível dessas informações contra a concorrência desleal e práticas comerciais desonestas. 
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no art. 24 e no Título I, Capítulo VI, da Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996, no caso de descumprimento da obrigação prevista no caput. 
Art. 4º A exploração das patentes licenciadas nos termos deste Decreto poderá ser realizada diretamente pela União ou por terceiros devidamente contratados ou conveniados, permanecendo impedida a reprodução de seus objetos para outros fins, sob pena de ser considerada ilícita. 
Art. 5º Nos casos em que não seja possível o atendimento à situação de interesse público com o produto colocado no mercado interno, ou se mostre inviável a fabricação, no todo ou em parte, dos objetos das patentes pela União ou por terceiros contratados ou conveniados, poderá a União realizar a importação do produto objeto das patentes, sem prejuízo da remuneração prevista no art. 2º. 
Art. 6º Caberá ao Ministério da Saúde informar ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI, para fins de anotação, o licenciamento compulsório concedido por este Decreto, bem como alterações e extinção desse licenciamento. 
Art. 7º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 4 de maio de 2007; 186º da Independência e 119º da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
José Gomes Temporão

A concessão do licenciamento se justificava, segundo o decreto, para “fins de uso público não-comercial” (art. 1º, §1º do Decreto). Além disso, o texto legal atribuiu a concessão da licença compulsória a circunstâncias de interesse público (art. 1º, §2º). Há previsão quanto à devida remuneração (ou indenização) do titular da patente, fixada em 1,5% “sobre o custo do medicamento produzido e acabado pelo Ministério da Saúde ou o preço do medicamento que lhe for entregue” (art. 2º). O laboratório detentor da patente estava obrigado a disponibilizar ao Ministério da Saúde todas as informações necessárias e suficientes a sua reprodução, enquanto o governo passaria a ter o dever de protegê-las (art. 3º). Também se previu a possibilidade de importação paralela do produto (art. 5º).
Seguindo a iniciativa de países como Estados Unidos e Índia, o governo brasileiro declarou, em 2008, como de interesse público o antirretroviral Tenofovir (também conhecido pelo nome comercial, Viread) e em seguida negou o pedido de patente requerido pelo laboratório canadense Gilead. Inicialmente, portaria do então ministro da Saúde, José Gomes Temporão, publicada no Diário Oficial da União de 09 de abril de 2007, declarou o medicamento como de interesse público. Em seguida, o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual – INPI, órgão do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, negou, em 16 de agosto de 2008, o registro de patente, que tramitava desde 1997, com fundamento no não atendimento do critério de atividade inventiva (arts. 8º e 13 da Lei de Propriedade Industrial, Lei n. 9.279/1996). À época dos fatos, o tenofovir era é um dos medicamentos mais caros do Programa Nacional de DST/Aids, sendo empregado por mais de trinta mil pacientes a um custo anual de aproximadamente US$ 40 milhões, conforme comunicado do Ministério da Saúde noticiado pela imprensa. Negado o pedido de patente, o governo brasileiro passou a comprar o antirretroviral de outros fabricantes, de países como a Índia, a preços que representam uma fração dos originalmente praticados pelo laboratório que pleiteava a patente.

4      Postura da diplomacia brasileira em matéria de acesso a medicamentos


No âmbito das negociações multilaterais sobre propriedade intelectual, é notório que o país tem adotado uma postura pró-ativa quanto a defender seus interesses de saúde pública. Dentre as propostas que o Brasil apoia e vem defendendo junto aos organismos internacionais, algumas podem ser aqui destacadas.[1]
Para o Brasil, é premente o fortalecimento das salvaguardas para a saúde pública existentes no TRIPS, de forma a assegurar que os governos tenham o direito de produzir medicamentos localmente, se for do interesse da saúde pública.
Deve-se também adotar uma interpretação do Acordo TRIPs em prol da saúde pública, valendo-se do uso flexível das salvaguardas e exceções existentes, incluindo licenciamento compulsório e direito à implementação de medidas para importação paralela de medicamentos.
O governo brasileiro tem ainda defendido a necessidade de se diminuir ao máximo a burocracia imposta aos países para a concessão de licenças compulsórias; de se prolongar os prazos de implementação especificados no TRIPS para os países em desenvolvimento quanto à proteção de patentes (tanto do produto como do processo) para medicamentos; e de se permitir aos países em desenvolvimento a opção de excluir medicamentos do patenteamento por motivos humanitários ou de saúde pública, para poder cumprir com os objetivos de salvar vidas, combater e controlar epidemias, e assegurar que a produção carente obtenha acesso a medicamentos essenciais para o tratamento de doenças relacionadas com a pobreza.
Mais do que tudo, é importante estabelecer-se um compromisso internacional com o objetivo de evitar pressões bilaterais ou regionais sobre países em desenvolvimento que adotem medidas para implementar seus direitos no âmbito do TRIPS visando proteger a saúde pública e promover o acesso a medicamentos, nem pressioná-los para que apliquem padrões de propriedade intelectual desnecessariamente rigorosos e potencialmente prejudiciais.
De igual maneira, também se tem defendido o apoio a uma moratória para disputas movidas contra países em desenvolvimento que representam um entrave a sua capacidade de promover o acesso a medicamentos e proteger a saúde pública (incluindo o uso do licenciamento compulsório e medidas de importação paralela).

Conclusões



A contradição entre comércio internacional e direitos humanos, em matéria de acesso a medicamentos, revela-se um conflito meramente aparente quando bem analisados os princípios gerais do Direito e os diplomas legais, internos ou internacionais, em que se assenta a matéria.
De igual maneira, a frequente alegação de que a proteção à propriedade intelectual acaba por se mostrar contrária e restritiva ao acesso à saúde é um equívoco a ser superado, e convém demonstrar que o direito à saúde e a proteção à propriedade intelectual desfrutam de uma relação muito mais harmônica do que normalmente se supõe.
É o que tem demonstrado a experiência brasileira de acesso a medicamentos.

Referências


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SILVEIRA, Newton. A propriedade intelectual e a nova lei de propriedade industrial: Lei n. 9279 de 14/5/96. São Paulo: Saraiva, 1996.




[1] Informações depreendidas de análise difusa de documentos variados do governo brasileiro ou de seus prepostos.

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